quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Opinião:-Revista VEJA: Entrevista


Estou devendo a mim mesma a postagem da entrevista da Dr. antropóloga Eunice Durham para a revista VEJA. Aqui me dei a liberdade de colocar em vermelho alguns questionamentos meus. A entrevista incita discussões relevantes. Acredito que todos os professores, e demais atuantes na área da educação, deveriam refletir a respeito... portanto, aproveitem!

Entrevista: Eunice Durham
Fábrica de maus professores

Uma das maiores especialistas em ensino superior
brasileiro, a antropóloga não tem dúvida: os cursos
de pedagogia perpetuam o péssimo ensino nas escolas



Monica Weinberg

"Os cursos de pedagogia desprezam a prática da sala de aula e supervalorizam teorias supostamente mais nobres. Os alunos saem de lá sem saber ensinar"


Hoje há poucos estudiosos empenhados em produzir pesquisa de bom nível sobre a universidade brasileira. Entre eles, a antropóloga Eunice Durham, 75 anos, vinte dos quais dedicados ao tema, tem o mérito de tratar do assunto com rara objetividade. Seu trabalho representa um avanço, também, porque mostra, com clareza, como as universidades têm relação direta com a má qualidade do ensino oferecido nas escolas do país. Ela diz: "Os cursos de pedagogia são incapazes de formar bons professores". Ex-secretária de política educacional do Ministério da Educação (MEC) no governo Fernando Henrique, Eunice é do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas, da Universidade de São Paulo – onde ingressou como professora há cinqüenta anos.

Sua pesquisa mostra que as faculdades de pedagogia estão na raiz do mau ensino nas escolas brasileiras. Como?
As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples (A antropóloga foi muito feliz e responsável na sua resposta. Veja que ela não generaliza, "MUITOS profissionais", me senti aliviada e justiçada com esse cuidado. Sobre o que ela diz, eu pude presenciar na prática. Recebi um email de uma colega de faculdade em que se lia "descanÇo", dentre outros erros!) nem expor conceitos científicos de média complexidade (Realmente! Para aprender a expor conceitos é preciso prática e total conhecimento do assunto, obviamente. Mas percebo, no meu curso, que poucos alunos participam das aulas: não emitem opinião, não respondem as perguntas do professor... e pior, não lêem os textos sugeridos e até os obrigatórios na maioria das vezes!!!). Chegam aos cursos de pedagogia com deficiências pedestres e saem de lá sem ter se livrado delas. Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres. (Injusto é responsabilizar apenas os cursos de pedagogia. Superar erros ortográficos, por exemplo, depende mais dos próprios estudantes do que da instituição. O triste é eles conseguirem ser aprovados cometendo erros torpes.. estranho, não!?).

Essa filosofia é assumida abertamente pelas faculdades de pedagogia?O objetivo declarado dos cursos é ensinar os candidatos a professor a aplicar conhecimentos filosóficos, antropológicos, históricos e econômicos à educação. Pretensão alheia às necessidades reais das escolas – e absurda diante de estudantes universitários tão pouco escolarizados. (Aqui já acho que ela errou. O equívoco não está em a universidade ensinar os candidatos a professor a aplicar conhecimentos filosóficos e etc, visto que isso também é necessidade real e indispensável SIM das escolas, mas em parar por aí. A Universidade, além disso, deveria focar, antes de tudo, as necessidades mais básicas, e não excluir tais conhecimentos. E como assim, estudantes UNIVERSITÁRIOS pouco escolarizados??!! E caso sejam, todos são capazes de estudar e alcançar, uns com mais esforço, outros com menos, dos mais simples aos mais complexos pensamentos. Esse argumento é absurdo! Pressupõem-se que todos que chegam à faculdade de Pedagogia são uns BURROS!)


O que, exatamente, se ensina aos futuros professores?Fiz uma análise detalhada das diretrizes oficiais para os cursos de pedagogia. Ali é possível constatar, com números, o que já se observa na prática. Entre catorze artigos, catorze parágrafos e 38 incisos, apenas dois itens se referem ao trabalho do professor em sala de aula. Esse parece um assunto secundário, menos relevante do que a ideologia atrasada que domina as faculdades de pedagogia. (Nos cursos de Letras da UFF, existe, nos últimos quatro períodos, uma disciplina chamada Pesquisa e Prática de Ensino (PPE), em que o futuro professor terá contato direto com a sala de aula através dos estágios, tanto de observação como de atuação, ou seja, ele terá que observar e realizar projetos que pensem a prática da sala de aula em que se encontra como estagiário, apresentando saídas para as deficiências do ensino e da escola, podendo inclusive aplicar seu projeto na mesma, caso a direção da escola e o professor (da turma observada) estejam de acordo).


Como essa ideologia se manifesta?Por exemplo, na bibliografia adotada nesses cursos, circunscrita a autores da esquerda pedagógica(Carece de exemplo, poderia ter citado pelo menos um autor, assim não vale!). Eles confundem pensamento crítico com falar mal do governo ou do capitalismo(Argumento duvidoso... só sabendo a que base teórica ela se refere para dar crédito ou não a esta resposta!). Não passam de manuais com uma visão simplificada, e por vezes preconceituosa, do mundo(QUAIS???). O mesmo tom aparece nos programas dos cursos, que eu ajudo a analisar no Conselho Nacional de Educação. Perdi as contas de quantas vezes estive diante da palavra dialética, que, não há dúvida, a maioria das pessoas inclui sem saber do que se trata(Em que situações? Numa palestra? Durante uma reunião? Numa simples conversa com algum professor ou estudante? Isso faz diferença!). Em vez de aprenderem a dar aula, os aspirantes a professor são expostos a uma coleção de jargões. Tudo precisa ser democrático, participativo, dialógico e, naturalmente, decidido em assembléia(Ué! E não precisa?).


Quais os efeitos disso na escola?Quando chegam às escolas para ensinar, muitos dos novatos (Mais uma vez ela não generaliza. Parabéns!) apenas repetem esses bordões. Eles não sabem nem como começar a executar suas tarefas mais básicas. A situação se agrava com o fato de os professores, de modo geral, não admitirem o óbvio: o ensino no Brasil é ainda tão ruim, em parte, porque eles próprios não estão preparados para desempenhar a função (Pode ser. Argumento válido, sem dúvidas! Parabéns para o "em parte"! Muito bom!).


Por que os professores são tão pouco autocríticos?Eles são corporativistas ao extremo. (Epa! Argumento perigoso!) Podem até estar cientes do baixo nível do ensino no país, mas costumam atribuir o fiasco a fatores externos, como o fato de o governo não lhes prover a formação necessária e de eles ganharem pouco (Epa, epa... vamos com calma! Essa é mesmo a realidade do professor! O que não é desculpa, claro, para reallizar mal o seu trabalho. Mas manter a qualidade do ensino tendo que dar aula em mais de duas escolas, pegando de 15 a 20 tumas, cada uma com no mínimo trinta alunos, é bastante complicado! É fisicamente impossível! nem voz resta ao "querido" professor!Infelizmente professor também é ser humano: tem que comer e pagar contas!) . É um cenário preocupante(Sem dúvida!). Os professores se eximem da culpa pelo mau ensino (Alguns sim, outros não. O fato é, se não há um salário justo, se não há realmente condições de trabalho justas, essas desculpas continuarão a existir! Há uma forma bem simples de resolver isso, adivinnhem qual é!!!! Reconhecer o valor do professor! Assim como reconhecem dos defensores e promotores públicos; dos procuradores, dos juízes, e olha que legal, dos deputados e senadores!)– e, conseqüentemente, da responsabilidade. Nos sindicatos, todo esse corporativismo se exacerba(Que coisa feia falar assim!).


Como os sindicatos prejudicam a sala de aula?Está suficientemente claro que a ação fundamental desses movimentos é garantir direitos corporativos, e não o bom ensino (Cada coisa tem o seu lugar!). Entenda-se por isso: lutar por greves, aumentos de salário e faltas ao trabalho sem nenhuma espécie de punição(Ora, ora... faltas ao trabalho devem ser punidas sim, óbvio! Mas lutar através de greves por aumento de salário é digno, é um direito! E esse é um dos motivos pelo qual existe o sindicato! Como disse antes, cada coisa tem o seu lugar!). O absenteísmo dos professores é, afinal, uma das pragas da escola pública brasileira. O índice de ausências é escandaloso (Quero nomes de instituições! Quero números!). Um professor falta, em média, um mês de trabalho por ano e, o pior, não perde um centavo por isso (Generalização não, madame! Mas em todo caso, realmente, tem que haver punição nesses casos!). Cenário de atraso num país em que é urgente fazer a educação avançar. Combater o corporativismo (Epa, epa... argumento perigoso! Radical!!!) dos professores e aprimorar os cursos de pedagogia (Aprimorar é sempre bom!), portanto, são duas medidas essenciais à melhora dos indicadores de ensino.


A senhora estende suas críticas ao restante da universidade pública?Há dois fenômenos distintos nas instituições públicas. O primeiro é o dos cursos de pós-graduação nas áreas de ciências exatas, que, embora ainda atrás daqueles oferecidos em países desenvolvidos, estão sendo capazes de fazer o que é esperado deles: absorver novos conhecimentos, conseguir aplicá-los e contribuir para sua evolução. Nessas áreas, começa a surgir uma relação mais estreita entre as universidades e o mercado de trabalho. Algo que, segundo já foi suficientemente mensurado, é necessário ao avanço de qualquer país. A outra realidade da universidade pública a que me refiro é a das ciências humanas. Área que hoje, no Brasil, está prejudicada pela ideologia e pelo excesso de críticas vazias(Como por exemplo... ?). Nada disso contribui para elevar o nível da pesquisa acadêmica(Disso o quê? Críticas vazias?? Como por exemplo... ? Ih! Não tem exemplo de novo! Não vale!).


Um estudo da OCDE (Qual? Gostaria de dar uma olhadinha.)(organização que reúne os países mais industrializados) mostra que o custo de um universitário no Brasil está entre os mais altos do mundo – e o país responde por apenas 2% das citações nas melhores revistas científicas. Como a senhora explica essa ineficiência?Sem dúvida, poderíamos fazer o mesmo, ou mais, sem consumir tanto dinheiro do governo(Tadinho do governo! O melhor mesmo é investir nas viagens dos senadores, dos deputados, nos jatinhos do presidente, nas cuecas, no caixa-dois... investir para instruir o povo... pra quê!?). O problema é que as universidades públicas brasileiras são pessimamente administradas(Ih! Generalizou de novo! Tcs... tcs...). Sua versão (qual?) de democracia, profundamente assembleísta, só ajuda a aumentar a burocracia e os gastos públicos(Explica isso direito, não deu pra entender não! Democracia = burocracia = gasto público!?? Eiiiita!). Essa é uma situação que piorou, sobretudo, no período de abertura política, na década de 80, quando, na universidade, democratização se tornou sinônimo de formação de conselhos e multiplicação de instâncias. Na prática, tantas são as alçadas e as exigências burocráticas que, parece inverossímil, um pesquisador com uma boa quantia (Ela só pode estar brincando! Um bolsista do CNPq da graduação ganha 350, 00! Será que ela sabe quanto custa um livro no Brasil? Será que ela pega ônibus, sabe o preço da passagem?) de dinheiro na mão passa mais tempo envolvido com prestação de contas do que com sua investigação científica (Não sei se MAIS tempo, porém BASTANTE tempo, com certeza!). Para agravar a situação, os maus profissionais não podem ser demitidos (Isso realmente é verdade! Um ponto que merece ser revisto!). Defino a universidade pública como a antítese de uma empresa bem montada.


Muita gente defende a expansão das universidades públicas. E a senhora?Sou contra. Nos países (como por exemplo... ?) onde o ensino superior funciona, apenas um grupo reduzido de instituições concentra a maior parte da pesquisa acadêmica, e as demais miram, basicamente, os cursos de graduação. O Brasil, ao contrário, sempre volta à idéia de expandir esse modelo de universidade. É um erro (Será?). Estou convicta de que já temos faculdades públicas em número suficiente para atender aqueles alunos que podem de fato vir a se tornar Ph.Ds. ou profissionais altamente qualificados. Estes são, naturalmente, uma minoria (Cruel, mas verdadeiro!). Isso não tem nada a ver com o fato de o Brasil ser uma nação em desenvolvimento. É exatamente assim nos outros países (Como por exemplo...?).


As faculdades particulares são uma boa opção para os outros estudantes?Freqüentemente, não. Aqui vale a pena chamar a atenção para um ponto: os cursos técnicos de ensino superior, ainda desconhecidos da maioria dos brasileiros, formam gente mais capacitada para o mercado de trabalho do que uma faculdade particular de ensino ruim. Esses cursos são mais curtos e menos pretensiosos, mas conseguem algo que muita universidade não faz: preparar para o mercado de trabalho. É estranho como, no meio acadêmico, uma formação voltada para as necessidades das empresas ainda soa como pecado. As universidades dizem, sem nenhum constrangimento, preferir "formar cidadãos" (O erro não está aí!). Cabe perguntar: o que o cidadão vai fazer da vida se ele não puder se inserir no mercado de trabalho? (Verdade...)


Nos Estados Unidos, cerca de 60% dos alunos freqüentam essas escolas técnicas. No Brasil, são apenas 9%. Por quê?Sempre houve preconceito no Brasil em relação a qualquer coisa que lembrasse o trabalho manual, caso desses cursos(Verdade.). Vejo, no entanto, uma melhora no conceito que se tem das escolas técnicas, o que se manifesta no aumento da procura(Que bom!). O fato concreto é que elas têm conseguido se adaptar às demandas reais da economia. Daí 95% das pessoas, em média, saírem formadas com emprego garantido. O mercado, afinal, não precisa apenas de pessoas pós-graduadas em letras que sejam peritas em crítica literária ou de estatísticos aptos a desenvolver grandes sistemas(Claro que não!). É simples, mas só o Brasil, vítima de certa arrogância(???), parece ainda não ter entendido a lição(Não entendi!).


Faculdades particulares de baixa qualidade são, então, pura perda de tempo?Essas faculdades têm o foco nos estudantes menos escolarizados – daí serem tão ineficientes. O objetivo número 1 é manter o aluno pagante. Que ninguém espere entrar numa faculdade de mau ensino e concorrer a um bom emprego, porque o mercado brasileiro já sabe discernir as coisas. É notório que tais instituições formam os piores estudantes para se prestar às ocupações mais medíocres. Mas cabe observar que, mesmo mal formados, esses jovens levam vantagem sobre os outros que jamais pisaram numa universidade, ainda que tenham aprendido muito pouco em sala de aula. A lógica é típica de países em desenvolvimento, como o Brasil.


Por que num país em desenvolvimento o diploma universitário, mesmo sendo de um curso ruim, tem tanto valor?No Brasil, ao contrário do que ocorre em nações mais ricas, o diploma de ensino superior possui um valor independente da qualidade. Quem tem vale mais no mercado. É a realidade de um país onde a maioria dos jovens está ainda fora da universidade e o diploma ganha peso pela raridade. Numa seleção de emprego, entre dois candidatos parecidos, uma empresa vai dar preferência, naturalmente, ao que conseguiu chegar ao ensino superior. Mas é preciso que se repita: eles servirão a uma classe de empregos bem medíocres – jamais estarão na disputa pelas melhores vagas ofertadas no mercado de trabalho.


A tendência é que o mercado se encarregue de eliminar as faculdades ruins?A experiência mostra que, conforme a população se torna mais escolarizada e o mercado de trabalho mais exigente, as faculdades ruins passam a ser menos procuradas e uma parte delas acaba desaparecendo do mapa. Isso já foi comprovado num levantamento feito com base no antigo Provão. Ao jogar luz nas instituições que haviam acumulado notas vermelhas, o exame contribuiu decisivamente para o seu fracasso. O fato de o MEC intervir num curso que, testado mais de uma vez, não apresente sinais de melhora também é uma medida sensata. O mau ensino, afinal, é um grande desserviço.


A senhora fecharia as faculdades de pedagogia se pudesse?Acho que elas precisam ser inteiramente reformuladas(INTEIRAMENTE! Nossa! Então é melhor fechar mesmo!). Repensadas do zero mesmo. Não é preciso ir tão longe para entender por quê. Basta consultar os rankings internacionais de ensino. Neles, o Brasil chama atenção por uma razão para lá de negativa. Está sempre entre os piores países do mundo em educação(E é claro que isso só se deve às Universidades, nada mais! Faça-me o favor... !).

veja ed.2088/ 26 de novembro de 2008/ pgs.17, 20 e 21.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Conto - Som caloroso


Som caloroso

Acredito ter alcançado, finalmente, tudo aquilo que sempre busquei. Hoje, aos cinqüenta e dois anos, posso dizer que minha luta resultou na conseqüência da qual sempre quis que fosse a causa.
Moro num invejável apartamento de um prédio a que todos aqueles que possuem um naco de civilização em suas mentes chamam de luxo. Cômodos arejados e amplos. Decoração que aparenta ser inspirada nas emoções mais sinceras de uma alma renascentista. Cada parte trabalhada de tal maneira minuciosa, que assim como as igrejas do século XVII, era impossível crer-se concretizadas por mãos humanas. Não obstante, tudo que consegui é dotado de muita humanidade, e só dela advém.
Móveis impecáveis. Beleza e conforto em harmonia total. Mas nem por ter a minha casa o encanto das belas obras de tempos há muito idos, abstém-se do melhor que pode proporcionar a era digital.
Televisores que ostentam imagens que parecem filtrar todo o espaço real. Uma beleza mágica. Às vezes acredito que a imagem digital é produto de bela magia, magia a que todos nós buscamos quando crianças e que gradativamente se esvaece com a chegada da maturidade. Esta que chega com o passar dos anos agastada pelos mais diversos choques de realidade.
O que mais me impressiona é a vista. Majestosa vista! Sim, porque meu apartamento é uma cobertura. À noite deixo-me enlevar por horas em sua imensidão, naquelas luzes noturnas e nas rajadas de ventos frescos. Sou um tipo de rei, um senhor feudal de uma época em que poucos, muito poucos, são detentores do “reino” que tenho hoje.
Mas nada é perfeito. Aos cinqüenta e dois anos, minha vida é por demais silenciosa. Somente escuto os ruídos incessantes dos veículos, dos toques do meu celular e da televisão quando a ligo.
Detesto a noite. Olho para a minha mesa farta, os móveis, ar condicionado, TV, os pouco porta-retratos com fotos e nada. Nada, absolutamente nada...
Fotos são momentos congelados, servem para relembrar. E viver de lembranças é morrer deixando cada pequena parte vital nas reminiscências remanescentes. Imagens de um tempo que hoje em tudo parece melhor e para o qual é impossível retornar a fim de reescrever a própria história, só que agora com um conteúdo imprescindível adquirido pela experiência, com um vocabulário mais vasto e com um estilo infinitamente superior. As fotos relembram épocas que deveriam tão-só ter sido um ensaio para que após pudesse eu fazer de minha biografia um grande espetáculo.
Infelizmente, o roteiro de minha vida foi desaprovado por quem mais importa: eu mesmo! As cortinas fecharam-se para um palco, sem dúvida, esplendoroso, rico, belo, mas diante de uma platéia deserta. Silêncio... nem o choro das tragédias, quanto menos os suspiros dos romances e as risadas das comédias.
Certa vez, levei um empregado “quase-amigo” até sua casa. Regula-me a idade. Voltávamos de uma longa viagem de trabalho. Era véspera de Natal. Ao chegar à residência foi recebido com imensa alegria por sua esposa e uma moça que devia ter uns dezenove anos, sua filha. Linda e meiga garota! A seu convite, juntei-me a eles naquela noite e observei-lhes as expressões durante aqueles breves momentos. Parecia o prolongamento das minhas fotos. Momentos dotados de som, mas não o som mecânico e frio que me acompanha nessa fase de minha vida. Era um som caloroso, de um aplauso emocionado, satisfeito com o espetáculo. Simplesmente feliz!
Há muito que não desfruto desse som. Nada quer dizer com o fato de ter pessoas em meu redor. É outra coisa!
Hoje tenho cinqüenta e dois anos. Estou no lugar pelo qual sempre lutei para estar, diante de uma mesa farta. Falta-me o som que tem em casa o meu “quase-amigo”. Tirando os automóveis que esta noite continuam a passar lá embaixo, tudo permanece silencioso e a noite é fria como o barulho que interrompe o silêncio.
Do banquete que tenho à minha frente só tomarei o cálice de cianureto. Assim que acabar de escrever o levarei à boca. Tenho certeza de que quando acabar minha cabeça irá despencar sobre a mesa provocando um som seco e imperceptível a terceiros. Som do qual somente meu palácio será testemunha.
Palácio imenso, frio e silencioso, a quem minha vida dei para conseguir! Toma-a agora suas paredes, para todo o sempre, e em silêncio.

Gustavo Teixeira Barbosa

Poemas (dois autores)


A dança do Ser
Não faça o que digo
nem ouça o que falo.
Aprenda comigo
que a vida é uma farsa.

Mas, com ninguém, minto
no convívio cara a cara.
Não sou o que você pensa,
nem o que cogitara.

Sou muito mais do isso,
faço tipo na praça.
Escrevo para passar o tempo,
enquanto lembro do que mais admirava.

Ontem fui poeta,
hoje sou menino
e, no futuro, um Ser em devir.
O homem humilde
que não se cansa de rir-se
do que o suponham ser.
Postado por Rômulo às 19:43
Domingo, 7 de Dezembro de 2008

Resposta do poema sem título (à Dança do ser)

“A vida é uma farsa”

Eu não faço o que você diz
E não ouço o que você fala
-A vida não é uma farsa!

Então ouço o que você diz
Então ouço o que você fala
A vida não é uma farsa.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Artigo: Literatura Portuguesa Contemporânea I



Reflexões sobre o espaço em O esplendor de Portugal: a transformação do cenário pela guerra

Marcela Teixeira Barbosa (UFF)

O trabalho tem como objetivo a análise da questão do espaço e, conseqüentemente, do tempo, dentro da obra O Esplendor de Portugal, de Antônio Lobo Antunes, apontando as suas funções e de que maneira são introduzidos pelo narrador. Denota-se, principalmente, a peregrinação das personagens Isilda e Maria da Boa Morte por Angola em momento de guerra civil, procurando-se problematizar as descrições do cenário nos diferentes tempos pelos quais atravessa a narrativa.

O Esplendor de Portugal, de António Lobo Antunes, é composto por quatro vozes narrativas em primeira pessoa (Isilda, a mãe e Carlos, Clarisse, e Rui, os filhos) através das quais o enredo se desenvolve de maneira fragmentada, visto que cada uma delas conta um quinhão da história a partir do seu ponto de vista e de suas experiências, ora vividas no tempo presente, do qual narram, ora revividas de um tempo pretérito, geralmente comum a todas elas. Entretanto, não é apenas a polifonia a responsável pela fragmentação do romance; a narrativa de cunho memorialístico se constrói conforme os estados emocional e psicológico dos narradores-personagens, ou seja, conforme uma lógica interior.
Dentre muitos outros temas que se podem ver problematizados neste romance quanto à sua estrutura de fluxo de pensamentos, resumidamente descrita acima, talvez seja a do espaço fundamental para uma boa investigação sobre a vida e o eu de cada um dos personagens e, principalmente, sobre os objetivos do autor. Neste texto, concentra-se a análise do espaço na forma como é introduzido pela narradora Isilda na sua fuga pelo território angolano junto a Maria da Boa Morte dos perigos da Guerra Civil. Antes disso, todavia, o tema será abordado de forma geral, não sendo, assim, possível a sua análise profunda.
Podemos dizer que o romance, quanto a uma visão macroscópica, possui dois grandes espaços principais: o espaço de Portugal, especificamente Ajuda, onde estão situados também no tempo, 24 de dezembro de 1995, os três filhos de Isilda; e o espaço de Angola, onde se encontram a mãe, a cozinheira, Maria da Boa Morte, e os demais empregados, na fazenda de algodão, em Malanje. Já uma visão microscópica do espaço, permite-nos apontar a sua multiplicidade: a fazenda e os seus cômodos, as estradas, o galpão de caça de Eduardo (pai de Isilda), o quarto do comandante de polícia (em Angola); a casa de Carlos, o apartamento de Clarisse, a clínica de internação de Rui, entre outros (em Portugal).
Essa variedade de espaços não torna, como acontece em alguns romances, a obra superficial no que diz respeito, por exemplo, à constituição das personagens e ao drama por elas vivido, pois é a estrutura narrativa de deslocamentos de tempo e espaço, realizada de maneira fragmentada pela memória (alternando passado e presente; Angola e Portugal) o recurso responsável pelo aprofundamento da construção do “eu” das personagens; ou seja, é assim que o leitor conhece a história das mesmas e a trajetória por elas percorrida até o presente momento, do qual elas contam o seu ponto de vista sobre a história familiar em Malanje, fator, segundo George Lukács, imprescindível, pois sem ele não há “margens a que as interessantes qualidades do personagem se expliquem através de um entrecho individual e o interesse (do leitor) diminui” (LUKÁCS, 1968, p. 96). Imediatamente, às vezes sem nenhum aviso ao leitor, a narrativa é deslocada, de uma oração para outra, para espaços completamente diferentes, no passado das personagens, como se as suas lembranças “presentificassem” aquele espaço e aquele tempo. Como exemplo disso, temos o momento em que Carlos está na cozinha de sua casa na Ajuda e, de repente, está em um jipe que percorre um caminho para longe de sua fazenda, em Angola:

fiquei sozinho na cozinha a ouvir o zumbido do frigorífico e a olhar os morros da Almada, a olhar a fazenda do postigo do jipe à medida que nos afastávamos pelos buracos da picada que dividia os girassóis murchos até ao alcatrão... (O.E.P, p. 12).

Dessa forma, a mudança de espaço é essencial justamente para uma construção mais complexa do romance, ou seja, a disposição das memórias, por não se conter em um único espaço, onde se encontram as personagens, no presente, enriquece o entrecho, tornando possíveis, diferentes janelas de interpretação e análises, sejam essas realizadas a partir do foco narrativo ou da estruturação do enredo. Parafraseando Massaud Moisés, o enriquecimento ocorre, porque “os personagens trouxeram dentro de si os germes de antagonismos mais sugestivos, decorrentes noutro lugar” (1983, p. 103).
Além disso, a sobreposição do espaço passado de Angola sobre o espaço presente de Portugal, efetuado, a todo o momento, por Carlos, Rui e Clarisse, tem uma outra importante função de denotar que os filhos de Isilda ainda se encontram presos ao espaço de Angola, à fazenda de Malanje e à sua densa atmosfera. Enfim, a estratégia é de construir o enredo a partir de lembranças que surgem de maneira não linear, como se cada mudança de espaço, tempo e narrador fosse uma peça de um grande quebra-cabeça que o leitor terá que montar. Desperta-se, então, naquele que lê o romance, a curiosidade não de saber o fim da história, pois esse, desde o princípio, já está subentendido pelo que dizem as personagens, mas a de montar esse “quebra-cabeça”, visto que o autor não narra e tampouco descreve situações prontas e acabadas; ele constrói o romance de forma recortada forçando o leitor a agir como um investigador, analisando os diferentes discursos, organizando os diferentes espaços e tempos.
Para isso, a descrição de determinados objetos, por exemplo, adquire o papel de revelar o tipo de ambiente que envolve as personagens e, dessa forma, caracterizá-las e situá-las na história, como por exemplo, o relógio da sala em Angola, que não aparece descrito simplesmente devido a funções estéticas ou vazias, de que tratou George Lukács em Narrar ou descrever, mas com o objetivo de demonstrar, além do tenso ambiente familiar, a insegurança vivida por Carlos, que se percebe em um ambiente preste a explodir, mas que se mantém inteiro e único devido às batidas do relógio: ou seja, é a esse objeto que ele, na sua infância, confia a segurança e estabilidade do lar, que são inexistentes: “As coisas só têm vida poética enquanto relacionadas com acontecimentos de destinos humanos” (LUKÁCS, 1968, p. 7), por isso o bom narrador deve descreve-las apontando para “a função que elas assumem nas vidas humanas” (LUKÁCS, 1968, p. 7) como fez Carlos.
Na fuga de Isilda e Maria da Boa Morte por Angola à procura de um lugar seguro em plena Guerra Civil, acompanhamos as duas mulheres a deixarem a fazenda, cruzarem o rio “que era um rio nas chuvas e agora um pântano de lodo ralo onde os crocodilos não encontravam abrigo” (O.E.P, p.227), chegar a Marimba, na antiga casa de caça de Eduardo e percorrerem a estrada até Luanda. É preciso estar atento à elaboração desses espaços para que não cometamos o equívoco de confundir com espaço o conjunto de processos e elementos narrativos - a que Osman Lins denominou ambientação - responsáveis pela construção do ambiente, no caso de O.E.P, de destruição, violência e vazio.
Como a descrição do espaço da guerra surge conforme as ações e os paralelos entre um passado e um presente realizados por Isilda, podemos dizer que a ambientação, neste caso, é dissimulada. A personagem revela ao leitor a sensação de vazio perante um espaço que foi transformado, que não mais existe: “eu a Josélia e a Maria da Boa Morte ao mudarmos fugindo da guerra (...) da miséria da Chiquita que não existia mais para a miséria de Marimba que se calhar não existia também” (O.E.P, p. 225-226). Essa estratégia de descrição denota a perda da identidade num lugar em que as imagens e elementos não são mais as auzaléas, os girassóis ou o algodão, visto que são substituídos por bombas de napalm, tropas do governo, mercenários da Unita e militares degolados.
A narrativa não convencional de A. L. A., que foge a qualquer “narrativa-mestra” (HUTCHEON, 1991, p. 23), permite a construção do espaço da guerra de maneira que o leitor o possa absorver e ser conduzido a uma nova reflexão sobre esse passado sangrento e nada glorificador. Assim, conforme Isilda e Maria da Boa Morte caminham em meio à degradação, as recordações daquela surgem para mostrar a transformação não somente chocante do espaço pela guerra, mas também para despertar naquele que as acompanha o sentimento de melancolia e não lugar no mundo pelos quais passam as duas mulheres; e isso é claramente alcançado em diversos momentos da narrativa, como por exemplo, na ambientação assinalada pela indicação de marcas temporais do pretérito mais-que-perfeito, “o que fora o edifício da administração, o que fora residência do administrador, o que fora o posto de enfermagem, o que fora o quartel dos portugueses em treze anos de guerra com escudos e capela de adobe, o que foram as senzalas” (O.E.P, p. 245), reforçada pelas lembranças de Isilda do discurso do não-lugar de parte dos portugueses, proferido diversas vezes pelo seu pai: “expulsos através dos angolanos pelos americanos, os russos, os franceses, os ingleses que não nos aceitam aqui para chegarmos a Lisboa onde nos não aceitam também” (O.E.P, p. 244).
Logo, o foco narrativo não se concentra na descrição pictórica, comum em romances realistas da segunda metade do século XIX. O espaço é apresentado a partir de uma personagem ativa, que incorpora o horror consecutivo da guerra civil e não apenas descreve imagens estáticas ou cenários imutáveis. Ao apontar a falta de elementos do espaço anterior ao conflito armado, ou a substituição desses por outros, subentende-se o movimento de transformação ocasionado pelos confrontos: “não pode ser Luanda porque não encontro a Samba Pequena a Samba Grande, a Corimba, o barco do Mussulo, encontro (...) cadáveres de feira e ruínas de cartão” (O.E.P, p. 344). Assim, Isilda recusa a realidade desordeira de Luanda, “a cidade dos defuntos” (O.E.P, p. 317), negando a veracidade do que presencia. Ela atribui ao real o valor de espetáculo, de cenas dramatizadas: “um mimo representado de defunto pendurado no muro, se batermos palmas levanta-se e agradece, se voltarmos costas pergunta ao contra-regra – Fui bem? Enquanto limpa com o lenço a maquiagem e a graxa...” (O.E.P , p. 343).
A fuga de Isilda, portanto, não se dá somente através da sua andança pelo território angolano, mas também pela não aceitação do cenário de ruínas e de morte que a envolve. Assim, enquanto é encaminhada para a sua execução, na véspera de natal, do ano de 1995, pelos tropas do Governo, ela foge para um espaço interiorizado e idealizado de uma reunião natalina com seu marido, sua mãe, seus filhos e os empregados a lhes servirem:

as paredes da sala, os bibelôs, os quadros a ecoarem segundo o ritmo das árvores e a cadência das ondas como o algodão durante o jantar quando o Fernando trouxer a canja, o peru, o bolo-rei, os sonhos, as fatias douradas, o espumante, o meu marido a acender as velas do pinheiro, o Damião a amontoar os presentes contra a jarra
(p. 373).

Nos seus últimos momentos, Isilda nega as circunstâncias presentes, como em um faz-de-conta, fingindo que nada daquilo está acontecendo, e corrige, no seu interior, as imperfeições de seu passado, recriando a sua vida:

a tropa do governo e os estrangeiros da Unita nunca estiveram aqui, os bailundos nunca escaparam para a mata, nunca deixei os meus filhos no cais para Lisboa, nem um só cadáver nas ruas de Luanda, o meu marido, que história mais parva, nunca escondeu uma garrafa que fosse nas gavetas, não casei por estar grávida nem o meu pai me arranjou um noivo nem o meu pai me arranjou um noivo e lhe pagou para esconder a vergonha, sou virgem (p. 373).

Fora do lar, esse espaço onírico, perfeito, torna-se o seu refúgio, ou seja, perdida nesse mundo incoerente, a criação desse espaço é a forma que ela encontra de se proteger da realidade hostil e perigosa da guerra. Não se pode deixar de apontar para o fato de que é para o ambiente familiar de sua casa, mesmo que transformado pelo processo de idealização, o espaço para onde ela foge. Faz-se então uma analogia ao que Bachelard afirmou a respeito daquele, que ao deixar a sua casa dos tempos de infância, por uma nova, recorda-se daquela recriando-a: “Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida” (BACHELARD, 1978, p. 201). O mesmo faz Isilda, que se encontra totalmente desamparada, sem lar e sem família. E será no momento de seu assassinato que descreverá, de forma mais precisa e detalhada, o espaço em que viveu momentos felizes de proteção, junto a seus pai, como se desejasse com toda vontade se segurar àquele tempo para sobreviver: “o vôo dos pássaros, asas de feltro, gritos, mar lá embaixo, o Mussulo, os coqueiros, descíamos à praia, os meus pais e eu, o meu pai de terno creme panamá, a minha mãe de sombrinha aberta cor de rosa, eu com um chapéu de palha que se atava sob o queixo”(p. 381).
Tais recursos descritivos - o de negar a realidade do tempo presente, porque não corresponde a do tempo passado e, dessa forma, entender o espaço como uma imitação de um outro, diferente, “uma cidade a imitar outra cidade” (O.E.P , p. 342) – superam a função de caráter somente ornamental, adquirindo também o valor essencial de desconstruir a idéia, tanto tempo pertencente à memória discursiva, que, por sua vez, está diretamente relacionada a um espaço e a um período no tempo, mas que sofre perda total de sentido em época de guerra, de que um povo é superior a outro para o submeter a sua cultura e a sua ordem: “enquanto caminhávamos para o norte ou que cuidávamos ser o norte (...) à cata de uma cidade de brancos como eu onde pudesse ser branca, a Maria da Boa Morte pudesse ser preta, o mundo redescobrisse a sua ordem antiga” (O.E.P , p. 250).
Sendo assim, uma das conclusões a que podemos chegar a respeito da incorporação do espaço na narrativa, de O Esplendor de Portugal, é a de sua função essencial de investigação e aprofundamento no drama das personagens e do interior das mesmas, porque o espaço, nesse romance, não é constituído de “situações estáticas, imóveis (...) estados de alma dos homens ou estados de fato das coisas (...) estados de espírito ou naturezas-mortas” (LUKÁCS, 1968, p. 70), mas está intrínseco às ações do “entrecho” (LUKÁCS, 1968); não é constituído de sentimentos de nostalgia ou saudosismo, mas da necessidade de nova reflexão sobre o período histórico que tanto abalou o brio português. Portanto, podemos dizer, assim como afirma Linda Hutcheon, sobre os romances pós-modernos, que a obra de António Lobo Antunes, não “sugere nenhuma busca para encontrar sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente” (HUTCHEON, 1991, p.39), proposta por mais de um ponto de vista, por variados focos narrativos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANTUNES, António Lobo. O esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço __ in: Bachelard. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultura, 1978.
DIMAS, Antônio. Espaço e romance.São Paulo: Ática, 1985.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LUKÁCS, George. Narrar e descrever_ in: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MASSAUD, Moisés. A criação literária. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1983.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Artigo:Literatura Portuguesa Contemporânea




SONHO E DELÍRIO EM O ESPLENDOR DE PORTUGAL

Marcela Teixeira Barbosa


A origem dos sonhos e a procura de seu significado para o ser humano compõem uma discussão que vem perdurando ao longo dos séculos. Já se acreditou, por exemplo, na Antiguidade, como nos explica Freud em A interpretação dos sonhos, que esses seriam mensagens de deuses ou de demônios, podendo trazer ao sonhador, boas ou más revelações: “Eles aceitavam como axiomático que os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres sobre humanos nos quais acreditavam, e que constituíam revelações de deuses ou demônios” . Os sonhos que aparecem, entretanto, nesse romance de António Lobo Antunes, O esplendor de Portugal, de 1999, não são provenientes do sono, os quais os povos antigos criam ser de providência divina, mas são, talvez possamos dizer, oriundos da exaustividade da realidade dura a qual a personagem Isilda pertence. É por esse âmbito que fazemos analogia entre a teoria freudiana de realização dos desejos do homem através do sonho inconsciente, que se dá no sono, e a realização da vontade da personagem de estar e pertencer a outro espaço, a outro ambiente, que não o da Guerra Civil Angolana, através do sonho em que está em família na ceia de Natal, em 1995. Veremos o mesmo a respeito dos delírios da personagem, que para tornar a sua vida em África possível, ou seja, para se proteger do cenário destruído e hostil, nega a realidade exterior e inventa uma própria, no seu interior.
Desde o primeiro aparecimento de Isilda na narrativa, no capítulo 24 de julho de 1978, reconhecemos o ambiente angustiante e esmagador que a envolve. Através da descrição de imagens bastante expressivas, como a do “grito”, e a do “ventre que aumenta na escuridão do quarto”, nós, leitores, compartilhamos o pavor e a culpa que perseguem a personagem, enraizando nela a dor vívida e intensa que lhe acompanha por toda a história, não podendo ser expressa apenas pela boca, um dos órgãos responsáveis, dentre outras funções, de nos libertar, através do som e da fala, de nossos sentimentos, mas por todo o corpo:

Há qualquer coisa de terrível em mim. Às vezes à noite o murmúrio dos girassóis acorda-me e sinto o ventre aumentar na escuridão do quarto com aquilo que não é um filho, não é um inchaço, não é um tumor, não é uma doença, é uma espécie de grito que vai sair não pela boca mas pelo corpo inteiro e encher o campo como uivo dos cães...

O grito que Isilda mantém abafado, desde a sua infância até a fase adulta, a dor que ela não consegue exteriorizar, será compensada mais tarde através de delírios, devaneios, sonhos, ou seja, pela tentativa de fugir do ambiente em que se encontra. Essa sua agonia parece ter se iniciado após presenciar duas cenas seguidas de violência, quando era ainda uma criança, cenas que transformariam para sempre o seu interior. A primeira consiste em um ato de violência contra um animal, e o segundo, por conseqüência desse, consiste na violência de homens contra um louco:

Em criança antes de voltarmos a Angola assisti ao linchamento do louco da Vila de Nisa. (...) um dia abriu a barriga de um vitelo do pescoço às virilhas, o animal entrou a tropeçar nas tripas, os camponeses da herdade pegaram no louco (...) trouxeram-no aos encontrões para a eira, começaram a bater-lhe com enxadas e paus sem que se defendesse, protestasse sequer, um vagabundo que sorria aumentando o sorriso a cada golpe, lembro-me de uma oliveira corcunda, do sol, homens a erguerem e baixarem os ancinhos, o louco, sorrindo sempre, puxou o pente da algibeira das calças a arranjar o cabelo, no momento seguinte um calhau esmagou-lhe o peito e as madeixas assemelhavam-se ao ninho que as cegonhas construíram no vértice do depósito da água... .

O primeiro sinal que nos mostra o quanto essas cenas a traumatizaram e, portanto, não se trata de uma divagação gratuita ou superficial no romance, mas de grande importância para que se possa melhor compreender o que acontece à personagem e o motivo da atmosfera deprimente, que sempre acompanhou a família de Isilda, está na riqueza de detalhes das suas descrições. Podemos dizer, conforme se dá a descrição, que esses momentos de violência parecem ter passado muito lentamente para ela, no que diz respeito ao tempo psicológico, obviamente. Ela se fixa à “oliveira corcunda”, ao sol, ao pente sem “dente” do louco, como se tivesse tido tempo de, em meio à confusão, observar todo o cenário ao seu redor. Tal recurso narrativo, de exposição de detalhes, nos leva a crer na incapacidade da personagem de se desvincular do acontecido, visto que todo aquele cenário a impregna.
A narrativa fragmentada nos permite ainda perceber uma relação forte entre Isilda e o Louco de Nisa, criada pela mesma no momento do espancamento. Apiedada e frágil para que pudesse tomar qualquer atitude, impedindo a injustiça que estava se formando, o julgamento bárbaro dos homens sãos contra um homem incapaz de medir as conseqüências de seus atos vis, a personagem carrega sua parcela de culpa, de testemunha por toda a vida, criando para si uma neurose, uma obsessão. Ela deposita no pente do louco, que pega para si, a proteção, o carinho e a compaixão, sentimentos que não puderam ser expressos naquele momento de crueldade. O objeto parece funcionar como o seu elo entre o presente e o passado, ao qual, ela sabe, nunca se verá desvinculada, livre por completo. Como um sonho ruim, o fato a persegue como uma sombra, e se torna parte dela. Sempre que deseja atravessar o “portal” do tempo e voltar para aquele momento do trauma, ela tira o pente da “lata de biscoitos amolgada e riscada sem pintar na tampa”, sendo que, “assim que lhe tocava via as casas de Nisa e o vitelo entrava no largo tropeçando nas tripas, os outros que nunca hão-de compreender o que for” .
Nota-se nesse trecho outro elemento importante: a lata de biscoitos amolgada e riscada na tampa conservada por Isilda para guardar o objeto. Conscientizados de que o romance de António Lobo Antunes nada possui de impensado ou surge de forma gratuita, podemos frisar ainda mais a idéia o simbolismo que o pente representa, de elo do passado, visto que até a lata, em que esse é escondido, possui características próprias da infância de Isilda. Ampliando as possibilidades de interpretação, poderíamos nos arriscar a dizer que essa lata de biscoitos protege o seu passado, e ao abri-la e deparar-se com o pente que colheu na cena do crime, ela não apenas volta para o seu passado como também o pode tocar e compreender o momento de sua vida em que a “espécie de grito” começa a ser nela germinado e a crescer conforme o tempo passa: “e julgo que por essa época me aperceber que havia qualquer coisa de terrível em mim. Acordava a noite com o murmúrio dos girassóis” . A última frase desse trecho é essencial para que saibamos que o que a acorda não são, na verdade, os murmúrios dos girassóis; o que a acorda são os sonhos ruins, é o espancamento do louco da Vila de Nisa do qual está “impregnada”.
É necessário estar clara a relevância desse fato na vida de Isilda, para que entendamos as mudanças comportamentais da personagem com o passar do tempo, de 24 de julho de 1978 a 24 de dezembro de 1995, não como um fenômeno repentino, que se deu em seu interior, mas como a manifestação de traumas e desilusões que vêm se amontoando ao longo de sua trajetória, sem que ela conseguisse se desabafar de algumas delas. A sua ligação com o episódio já mencionado é tão forte que há momentos na narrativa em que ela, para expressar a si mesma, pelo monólogo interior, fluxo-de-consciência, o estado emocional em que se encontra, se identifica com os elementos daquele espaço, como por exemplo, na hora do parto, em que se compara, devido às dores e ao seu medo, ao vitelo esventrado: “eu como um vitelo esventrado a sangrar e a tropeçar nas tripas de cada vez que nasceram, lacerada do pescoço às virilhas a tombar de mim mesma numa agonia exausta” .
Assim, Isilda, em uma tentativa desesperada de se livrar do grito e do vazio que a consomem, se permite engravidar, entretanto nem isso a consegue aliviar a experiência de dor e injustiça vivida no passado: “consenti que o Carlos/ (não o Carlos não)/ se formasse em mim para abafar o grito” . Ao contrário de preencher o vazio ou lhe livrar da dor, o nascimento de seu filho Rui acaba por atormentá-la ainda mais, visto que ele nasce com problemas de nervos, tendo, por vezes, crises de epilepsia, e Isilda cobra-se por isso, atribuindo a ela mesma a culpa pela doença do mesmo:

Com o pente na palma, sorrindo de desafio para quem me matava porque há qualquer coisa de terrível em mim que vocês desconhecem mas de que os bichos e os pretos se dão conta(...) qualquer coisa de terrível que se prolonga no Rui .

A relação que a personagem estabelece entre o acontecimento vivido no passado e a doença de seu filho fica bastante evidente, porque além de o enredo nos apresentar trechos que nos mostram Isilda a pentear o filho com o pente do louco, ocorrem intercalações, pois a narrativa é toda fragmentada, entre a narração do episódio do Louco de Nisa, e a lembrança de momentos da consulta de Rui, em que o médico revela o diagnóstico, repetindo-se a sua fala por diversas vezes na narrativa: “Um problema no cérebro minha senhora correntes elétricas desordenadas o comportamento dele pode mudar” . E para apagar todas as dúvidas a respeito desse trauma de Isilda que se repercutirá por toda a sua vida, tem-se mais a frente o seguinte trecho, em que essa relação deixa de ser duvidosa para adquirir o caráter de certeza:

Os camponeses pegaram no louco de Nisa, pegaram no Rui, trouxeram-no aos encontrões para a eira, começaram a espancá-lo com enxadas e paus sem que o meu filho protestasse, lembro-me de uma oliveira corcunda, do sol, de homens erguendo e baixando os ancinhos, o Rui puxou o pente das calças para arranjar o cabelo e no momento seguinte um calhau esmagou-lhe o peito .

Além de ter de enfrentar seus traumas, Isilda é sobrecarregada pela dupla da tarefa que exerce, visto que tem que cuidar de tudo sozinha, desde os filhos aos negócios administrativos da fazenda, pois seu marido, alcoólatra, é incapaz de tomar qualquer atitude que a ele diz respeito, fugindo a todo o tempo da vida em família e da dele própria:

passou a orientar a fazenda não do campo mas da varanda do primeiro andar, de copo de uísque na mão e mais um litro oculto em cada armário, sem olhar o arroz, o milho, o girassol, o algodão, sem olhar a mim nem aos filhos” .

Outro fator que abala a personagem, e que aqui podemos denotar, é o seu envelhecimento. Ela não aceita que está envelhecendo e nega as marcas da idade, atribuindo ao espelho as mudanças que percebe em seu rosto:

Quando à noite sento ao toucador para tirar a maquiagem pergunto-me se fui eu que envelheci ou foi o espelho do quarto. Deve ter sido o espelho: estes olhos deixaram de me pertencer, esta cara não é minha, estas rugas e estas nódoas na pele serão manchas da idade ou o ácido a correr o vidro .

Com a Guerra Civil, a atmosfera que a envolve colabora para que, aos poucos e progressivamente, Isilda vá se perdendo dentro de si mesma, já que o mundo exterior a esmaga. O espaço de sua casa, que lhe era anos anteriores familiar, torna-se desconhecido depois da perda de entes queridos e da partida de seus três filhos para Portugal. Então, com o avançar dos anos e o caminhar da Guerra, a personagem vai perdendo o seu lugar no mundo, o seu espaço de desfaz; ela perde a família, os filhos, os empregados, a fazenda e, por fim, depara-se perdida em uma cidade transformada, destruída:

não pode ser Luanda porque não encontro, sei lá, Alvalade, encontro destroços sem janelas nem portas, veredas de sobejos, jipes coxos da polícia, barracas no lugar onde moravam meus primos com um mimo representando de defunto pendurado no muro, se batermos palmas levanta-se e agradece, se voltarmos costas pergunta ao contra-regra disfarçado de milícia Fui bem?
enquanto limpa com o lenço a maquiagem e a graxa .


A partir daí, Isilda começa a cada vez mais negar o espaço exterior, ao qual pertence. Ela inventa uma realidade própria, no seu interior, que não deixa de possuir, porém, vínculo direto com o que se passa na realidade concreta de seu tempo presente:

uma cidade inventada pelos ministros de Lisboa a fim de nos enganarem e obrigarem a partir, de que pensássemos
- Pronto a África é dos jingas não é minha acabou-se(...)
- Não me vou embora podem fingir que me matam que não me vou embora ouviram podem fazer o que lhes der na gana que não saio daqui .


Notamos, portanto, duas importantes manifestações no comportamento de Isilda: a do desejo de que todo o mal que ela presencia seja uma farsa, como um teatro, para que os portugueses desistam daquelas terras; e a do delírio, que a leva a caminhar por meio ao tiroteio, visto que acredita plenamente na mentira que ela própria inventa:

a metralhadora de brinquedo a emitir estalinhos de brinquedo, os cães que sabiam o seu papel de cor trotando para longe de nós, o adericista a despenhar telhas e pranchas, a Maria da Boa Morte a pedir
- Senhora
- Como se tivesse medo e as armas de plásticos disparassem a sério


O trecho escolhido se caracteriza, assim como os demais trechos do romance, em que Isilda distorce a realidade, levando-a ao limite do fantástico em que tudo seria uma grande encenação, pelo que Mikhail Bakhtin chamou “sério-cômico”. Temos uma heroína desordenada psicologicamente e fracassada nos seus objetivos pessoais no que diz respeito à vida familiar e econômica. Isilda não enfrenta o que se passa, mas foge disso, transformando a Guerra Civil em Angola em um cenário carnavalesco, em que os defuntos desmembrados são atores fantasiados de defuntos, as armas dos soldados são feitas de plástico e o sangue que sai das feridas de morte de sua fiel empregada, por exemplo, é qualquer outra coisa, que não sangue:

a Maria da Boa Morte num papel igual aos atores que representavam cadáveres (...) a alongar uma mancha que não era sangue, tudo o que quiserem menos sangue, não me conseguem convencer que era sangue ao comprido da perna .

Dessa forma, temos nessa obra de António Lobo Antunes, o papel do herói atual que, como todos os seres humanos, é suscetível ao desequilíbrio emocional e comportamental, não se mantendo sempre o mesmo, mas sofrendo transformações variadas. Diz Mikhail Bakhtin a respeito desse tipo de personagem: “falam e atuam na zona de um contato familiar com atualidade inacabada” .
Ao ser capturada pelos soldados de governo, resta a Isilda, envolvida por todo o cenário infecto da Guerra, se mover para o seu espaço interior, idealizado. A personagem realiza, momentos antes de ser assassinada, o seu desejo de estar reunida a sua família em sua casa, espaço que “abriga o devaneio, a casa protege o sonhador (...) a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” :

os meus filhos orgulhosos de mim, o Carlos e o Rui com ternos de domingo, a Lena naqueles exageros servilhanos (...) a Clarisse um bocadinho excessiva na maneira de andar (...) o meu marido sem beber (...) a minha mãe que não conheceu a guerra (...) quando o Fernando trouxer a canja, o peru, o bolo-rei, os sonhos, as fatias douradas, o espumante, o meu marido acender as velas do pinheiro, o Damião a amontoar os presentes contra a jarra... .

Percebemos no trecho, que a personagem, nesses momentos, se vê afastada do mundo da consciência de vigília, como em um sonho, que não se dá no sono, mas em um estado que vacila entre a consciência e a inconsciência, como um devaneio, um sonhar acordado, e é dessa forma que ela foge da realidade e concretiza dentro de si a realização do desejo que, de certa forma, está presente em todos os momentos da narrativa em que Isilda é o narrador-personagem: o de ter uma vida familiar em harmonia.
Assim, podemos dizer, que é no devaneio, com a desvinculação da personagem com a realidade, que ela tem o seu desejo realizado, da mesma forma como aquele que tem o sonho proveniente do sono, teoria defendida por Freud, em A interpretação dos sonhos.
Logo, afirmamos que houve no romance todo um caminho traçado e planejado pelo autor para que os delírios e o sonho de Isilda se desenvolvessem de forma verossímil e profunda, mostrando que a Guerra Civil Angolana foi sim grande responsável por esses dois, porém não o único. O azar de ter presenciado, quando criança,a cena de violência contra o louco de Nisa, de ter sido traída pelo marido fracassado e alcoólatra, de ter tido um filho doente e uma filha com opiniões próprias e comportamentais que não condiziam com o que ela, como mãe, acreditava ser o certo, além de ter perdido os pais e ser a única responsável pelo bom andamento, dentro do possível, visto que se encontrava sozinha para resolver qualquer espécie de problema, o cotidiano familiar, foi se acumulando com o passar do tempo e com os incidentes da vida, até que, como forma de sobreviver a tudo isso, inventa pra si um mundo imaginário e ideal, negando e distorcendo a realidade do espaço exterior, que como ela diz: “Não pode ser Luanda porque nunca estive aqui, uma cidade de indígenas construída por indígenas, ruínas amontoadas, pedaços de igreja, trastes na rua, lixo” (O.E.P, p. 342).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Atónio Lobo. O Esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 19??.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski Trad. de Paulo Bezerra ___ Rio de Janeiro: Forense-universitária, 1981.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. vol. IV, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972.

Artigo: Literatura e Sala de Aula


A literatura e a sala de aula: alienação ou novos horizontes?

Não lemos nem escrevemos poesia porque é bonitinho.
Lemos e escrevemos poesia porque somos humanos. A raça humana está repleta de paixão.
E medicina, advocacia, administração e engenharia... são objetivos nobres e necessários para
manter-se vivo. Mas a poesia, beleza, romance, amor... é para isso que vivemos
John Keating

Introdução
Escolhi como epígrafe deste meu artigo a fala do carismático e irreverente professor de literatura John Keating, personagem do longa norte-americano Sociedade dos Poetas Mortos (1989), porque nela encontrei a minha resposta para inúmeras questões acadêmicas do mundo das licenciaturas em arte e literaturas, presentes também, muitas das vezes, em nossas escolas de ensino fundamental e médio.
O filme, que completa quase duas décadas, retrata bem a chegada não apenas de um novo professor a uma escola tradicional preparatória dos EUA, mas com ele, e através dele, a chegada de uma nova corrente ideológica de uma diferente forma de se entender e viver a literatura dentro da sala de aula. Se durante séculos, conforme nos afirma Teresa Colomer , a literatura era ferramenta de construção moral e cultural do indivíduo, e chegou ao século XIX com fins didáticos para o desenvolvimento da retórica, atribuindo, conseqüentemente, muito valor aos autores desses textos e, portanto, tornando o ensino da literatura o ensino da vida desses, ou seja, biográfico e mais tarde, em princípios do século XX, teve como objeto primordial a análise e avaliação da sua forma, o que diminuiu a relevância autoral, cabe-nos perguntar qual seria o papel da literatura nos dias de hoje (séc. XXI), em que tanto a formação moral, quanto intelectual do indivíduo (o que se dirá, então, da importância da análise da construção de textos literários?), bastante valorizada séculos atrás, não são tão ou mais relevantes do que o poder de compra e venda do nosso atual sistema capitalista. Em outras palavras, por que e, principalmente, como ensinar literatura na era em que o lucro e o imediato são as forças propulsoras do estar no mundo?

1. Justificativas variadas

Não faltam justificativas para a presença da literatura nas escolas, devem ser incontáveis os ensaios, artigos e teses que abarcam essa problemática, o que talvez leve a pergunta “Por que ensinar literatura nas escolas?” parecer redundante; todavia notamos na prática, não somente em sala de aula, mas em demais espaços, que não há excessos ao se formar tal indagação, visto que, no sistema ao qual pertencemos, em que se pretende a unificação do pensamento que visa o lucro imediato, sem o questionamento do indivíduo sobre si e sobre o seu arredor, quanto menos se incita a reflexão, melhor.
No próprio filme hollywoodiano, a resposta sobre a finalidade da literatura aparece com facilidade através das palavras de John Keating, “Devemos constantemente mudar a nossa visão”, sendo o contato com diferentes discursos, tanto de autores variados quanto de formas diversas (poesia ou prosa), o precursor dessa mudança, essencial no mundo que se transforma a cada dia em todos os aspectos possíveis e inimagináveis. Dessa forma, podemos dizer, que a literatura seria uma das responsáveis por renovar os conhecimentos de mundo do sujeito leitor de forma não autoritária: ela renova a partir das próprias reflexões do ledor em contato com o texto e com o mundo, de maneira que ele possa pensar o seu universo e agir na história como um ser crítico, ativo e consciente.
Antonio Cândido trata a questão da possibilidade do acesso à literatura por todas as pessoas como um direito do ser humano:

a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (...) a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual .

A partir da constatação do teórico, presume-se que, sendo o espaço escolar democrático, ou seja, em que todos, pelo menos a partir da década de setenta, indiferentemente de cor ou de classe social, terão acesso aos mais variados conhecimentos sobre o mundo em que estão inseridos, é por lá que se deve iniciar o ensino de literatura. Logo, se o indivíduo não teria oportunidade de conhecer literatura em casa, com a sua família, porque os pais são analfabetos e, portanto, não possuem livros em casa, ou porque são alfabetizados, mas iletrados , e por isso, mesmo sabendo ler, não têm o convívio pleno com o mundo da escrita e da leitura, será no espaço escolar que a chance de se apropriar cabalmente do mundo da leitura e da escrita lhe será concedida. Além disso, a escola tem a autoridade para permitir que os sujeitos de hoje, tão atribulados com a rapidez e volatilização de informações, devido ao avanço contínuo da tecnologia, designem um tempo para o aprendizado e, portanto, para a leitura.

2. COMO ensinar literatura?
Temos de viver, na prática, o reconhecimento óbvio de que nenhum de nós está só no mundo. cada um de nós é um ser no mundo. com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educador, significa reconhecer nos outros o direito de dizer sua palavra. Direito deles que corresponde o nosso dever de escutá-los.Paulo Freire

Logo em uma de suas primeiras aulas, o professor John Keating, após abrir o livro didático de literatura, pede para que um dos alunos comece a ler o primeiro capítulo cujo assunto é poesia. Antes que o estudante termine a leitura em voz alta do primeiro parágrafo, o professor o interrompe dizendo: “Como pode descrever a poesia como se fosse um concurso?”, e logo após ordena sem hesitação que os alunos rasguem e lancem ao lixo o primeiro capítulo sobre poesia do livro didático.
Não pretendo defender nenhuma diretriz sobre teoria da literatura, mas certamente essa cena de Sociedade dos poetas mortos é um convite para a pergunta que intitula o meu presente artigo: afinal, o que pretendemos ao ensinar literatura nos colégios, “moldar o gosto e restringir a criatividade” e, portanto, fazer do aprendizado um acontecimento “limitado e isolado do mundo” , ou tornar as nossas crianças e adolescentes sujeitos leitores de literatura, e a partir dessa, conscientizá-los sobre o estar no mundo como sujeito de sua própria história e da história de seu país?
As justificativas para que se mantenha o sistema atual de ensino de literatura, que consiste em ler alguns poemas e trechos de romance, ora escolhidos apenas pelo professor, sem que se realize um diálogo com os alunos, ora oferecidos pelo próprio livro didático, são várias: a indisponibilidade de tempo do professor - que tem que trabalhar em mais de duas escolas, devido ao baixo salário - para a leitura de novos romances e poetas, um cronograma exigido pelo vestibular, a competitividade do mundo das letras com o mundo digital entre outras.
Admito que existe na área da educação de nosso país inumeráveis motivos de descaso responsáveis por desestimular professores e alunos. Mesmo assim, acredito que se olharmos para exemplos não apenas ficcionais como John Keating, mas reais, como Frank McCourt, autor de Ei, professor , poderemos alcançar nosso objetivo de formar cidadãos leitores de literatura, tendo o livro didático como mais uma ferramenta apenas para o aprendizado, e não como base ou direcionamento para as aulas, visto que esse (o aprendizado) deve ser construído pelo professor junto com os seus alunos, tendo o professor que se manter atualizado a cada ano, a cada turma, e cada turma ter que se comportar de forma ativa no universo escolar construindo através da troca de informações de mundo e de materiais diversos o seu conhecimento.
Antes de tudo, é preciso, segundo Paulo Freire, reconhecer que não há neutralidade no que diz respeito à educação, ou seja, direcionando essa constatação para dimensões menores, microscópicas, o professor, em sala de aula, estará sempre defendendo algum ponto de vista, alguma verdade em que acredita, portanto aconselha: “o que devemos fazer, enquanto educadores, é aclarar assumindo nossa opção, que é política e sermos coerentes com ela na prática” . Nas palavras de Frank McCourt: “é preciso abrir seu próprio caminho na sala de aula. É preciso descobrir a si mesmo. É preciso criar um estilo próprio (...) É preciso dizer a verdade senão os alunos vão desmascará-lo” .
Neste artigo defende-se, desde o princípio, o ensino de literatura como libertação e não como alienação, ou seja, como construção pelo leitor, em contato com a obra, de significados e ideologias presentes na literatura; e não apenas como repetição do que já vem pensado no material didático sobre as obras literárias, por exemplo, e, por isso, cabe-nos defender também a prática do ensino de literatura em sala de aula a partir da participação ativa dos alunos, reconhecendo-os, já no espaço escolar, como agentes da história, visto que “não é o discurso que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso” .
Agora que já estamos conscientes da importância da literatura nas escolas e da visão política adotada – a que nega a literatura em sala de aula como mais um meio de manipulação e, ao contrário disso, preza a “participação dos educandos no ato de conhecimento de também são sujeitos” – podemos conjeturar acerca dos empecilhos encontrados no próprio sistema escolar - na direção das escolas, fora das salas de aula – e de soluções para os mesmos.

3. Um sistema incoerente (e respostas coerentes)
Os alunos das minhas turmas, adultos entre dezoito e sessenta e dois anos, achavam que a opinião deles não valia nada. Quaisquer idéias que tivessem provinham todas da avalanche da mídia do nosso mundo. Ninguém jamais lhes disse que tinham direito a pensar por conta própria
O reconhecimento de que “ninguém sabe tudo e ninguém ignora tudo” , defendida por Paulo Freire, e encarnado na postura de John Keating e Frank McCourt , por exemplo, na sala de aula, trouxe a ambos grandes problemas. Frank McCourt foi convidado a deixar uma escola mais tradicional, devido ao seu “irregular” comportamento, perante e com os alunos, como transformar receitas culinárias em poemas; já Keating, além de receber olhares reprovadores de superiores da hierarquia escolar e de colegas também professores - quando não de próprios alunos mais conservadores do que os demais - foi moralmente responsabilizado pelo suicídio do estudante Neil Perry, por Robert Sean Leonard, sendo demitido. Perry, opta por tirar a própria vida, quando se vê impedido pelo pai de seguir a carreira de ator.
O que esses dois professores fizeram e nos servem de matéria para reflexão, foi dar voz aos alunos, reconhecendo-os como cidadãos agentes da história; e por isso foram massacrados pelo sistema escolar incoerente no que diz respeito ao seu discurso libertário e à sua prática pedagógica extremamente autoritária. Atuaram como elementos capazes de realizar as transformações anunciadas por Freire:
As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação sistemática se está dando e alteram seu papel ou seu esforço reprodutor da ideologia dominante

Acredito portanto que, enquanto encontrarmos resistência e receio do que o outro tem a dizer, enquanto houver censura dissimulada sobre a leitura de obras literárias, não será redundante perguntar sobre o papel da literatura nas escolas, e nem qual a melhor forma, se é que essa existe, de se ensinar literatura de modo que ela não seja apenas mais um objeto que contribua para o comodismo e a alienação, mas para a libertação, a construção da visão crítica e consciente sobre o mundo, abrindo, e não fechando, janelas, para novos horizontes.















REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e... . São Paulo: ed. Brasiliense, 19??
COLOMER, Teresa. Andar entre livros. São Paulo: ed. Global, 2007
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1988
McCOURT, Frank. Ei, professor. Rio de Janeiro: ed. Intrínseca, 2006.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: ed. Autêntica, 2006.
WEIR, Peter. Sociedade dos poetas mortos. 1989. cor. 129 min., Buena Vista Pictures.

A sobreposição dos espaços em O esplendor de Portugal




A SOBREPOSIÇÃO DOS ESPAÇOS EM O ESPLENDOR DE PORTUGAL

MARCELA TEIXEIRA BARBOSA*

Espaço é sinônimo de simultaneidade, e é por meio desta que se atinge a totalidade da obra.
(Luis Alberto Brandão, Espaços literários e suas expansões, 2007, p.210)


Acompanhados pela ironia de António Lobo Antunes, deparamo-nos, a cada releitura de O Esplendor de Portugal, com a possibilidade de olhar novamente para o período de decadência colonial português e em especial para A Guerra Civil angolana de 1975 a 2002. O romance, de estrutura psicológica e composto por quatro focos narrativos, conta a estória da família de Isilda (uma das personagens e dos narradores) que, em meio a tantos problemas, como o alcoolismo, o adultério, a doença e o falecimento de entes queridos, se vê, devido à guerra, obrigada a se separar, tendo os três irmãos, filhos de Isilda, que fugir para Ajuda, em Portugal, e a mãe que permanecer na fazenda de Malanje junto aos seus empregados.
Bastante caracterizada pela sua fragmentação, a obra contemporânea nos permite também discutir a nova concepção do homem moderno sobre a realidade, que não é mais concebida na forma romance somente a partir do tempo cronológico, em que passado, presente e futuro se dão linearmente sem se misturarem. Ao contrário disso, O Esplendor de Portugal denota a apreensão da realidade como aquela que é criada e recriada pelo homem, a partir de sua consciência; e com ele, concomitantemente às suas ações no meio: “espaço e tempo, formas relativas da nossa consciência, mas sempre manipuladas como se fossem absolutas, são, por assim dizer, denunciadas como relativas e subjetivas” (ROSENFELD, 1976, p. 81).
Dessa forma, quando se fala em sobreposição de espaços neste trabalho, procura-se apontar para o deslocamento repentino dos narradores-personagens entre um espaço e outro, independentemente se esse deslocamento é realizado entre o chamado espaço abstrato, recuperado no passado pelas lembranças daqueles e, de certa maneira, recriado pela memória de cada um, e o espaço concreto, no qual o personagem se encontra no tempo presente.
É de nosso interesse reconhecer, portanto, algumas das características estruturais desse romance de cunho memorialístico e psicológico que possibilitam a mudança ou o permeio dos narradores-personagens por esses diferentes espaços encontrados na obra. Uma dessas características é a forma como se dá o deslocamento do espaço, que não depende de uma aparente ordem exterior e macroscópica, em que tudo se sucede linearmente; ao contrário disso, está diretamente relacionado à ordem interior, ou seja, à memória dos personagens, mostrando, através de recursos da linguagem - como a interrupção de orações e a repetição de frases ou de alguns trechos do enredo - que “Em cada instante, a nossa consciência é uma totalidade que engloba, como atualidade presente, o passado e, além disso, o futuro, como um horizonte de expectativas” (ROSENFELD, 1976, p. 82):
a Lena gorda e de cabelo pintado acabou de secar os pratos, empilhou-os no armário, tirou as luvas e saiu para a sala onde estava o pinheiro de Natal (...)
-Já não vês os teus irmãos há 15 anos
fiquei sozinho na cozinha a ouvir o zumbido do frigorífico e a olhar os morros da Almada, a olhar a fazenda do postigo do jipe a medida que nos afastávamos
(O.E.P, p. 12)

Notamos, no trecho acima, que o narrador-personagem descreve a cena de seu tempo presente – Lena arrumando a cozinha após o almoço – ao mesmo tempo em que ressoa na sua mente a fala da esposa, dita anteriormente durante o almoço, “- Já não vês seus irmãos há quinze anos”. No momento seguinte, o movimento de sobrepor o espaço passado sobre o espaço presente é bastante explícito, pois sem nenhum aviso do narrador, o personagem Carlos, que se encontrava na cozinha de sua casa, está nas orações seguintes dentro de um jipe em Angola. Tal movimento é um traço importante para mostrar que os personagens, assim como nós, seres humanos, não pertencem apenas a um único espaço, o concreto do presente, mas a todos os outros nos quais estiveram no passado, principalmente aqueles onde passaram a infância e a juventude.
Sabemos que o ato de leitura se dá de maneira linear e seqüencial, ou seja, “os signos dispõem-se uns depois dos outros numa sucessão temporal ou espacial” (FIORIN, 2006, p. 65), por isso para alcançar o efeito de simultaneidade, o de que há diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo, claramente demonstrado no trecho selecionado e alcançado durante todo o romance, é preciso causar uma aparente desorganização estrutural, “uma continuidade que aparece no seio da descontinuidade" , visto que se segue a ordem da consciência, do fluxo psíquico, alterando, portanto, a ordem comum em enredos tradicionais, que se baseavam na lei de causa e efeito: “com seu encadeamento lógico de motivos e situações com seu início, meio e fim” (ROSENFELD, 1976, p. 84). Sendo assim, podemos fazer uma analogia entre o que afirmou Joseph Frank a respeito da poesia moderna e a estrutura de fluxo de pensamento e a fusão dos tempos e espaços desenvolvidas em O Esplendor de Portugal: “A relação do sentido é completada somente pela percepção simultânea, no espaço, de grupos de palavras que não possuem nenhuma relação compreensível entre si quando lidos consecutivamente no tempo” .
Assim, como pudemos perceber no exemplo, em O Esplendor de Portugal, as orações e o enredo, que é extremamente recortado, não obedecem a uma ordem lógica pré-estabelecida, e, por isso, exige a leitura atenta, visto que nem os narradores se mantêm os mesmos, revezado-se dois, um a cada capítulo (Carlos e Isilda na Primeira Parte; Rui e Isilda na Segunda e Clarisse e Isilda na Terceira), o que oferece ao leitor diferentes visões sobre um mesmo espaço compartilhado por todos eles no passado. Logo, podemos afirmar que a sobreposição dos espaços é realizada pelo menos de duas maneiras: através do deslocamento psíquico dos personagens entre o espaço de Portugal, no presente, para o de Angola, no passado; e através das narrações desenvolvidas por cada um, que ao mesmo tempo em que se sobrepõem, pois cada um irá expor seu ponto de vista, se complementam, visto que abordam situações subjetivamente, dando ao romance o caráter de mosaico, “de uma série de elementos descontínuos” (BRANDÃO, 2007, p. 210) que se encontram na totalidade do romance e formam o todo compreensível.
Encontramos no texto a fusão entre o espaço concreto (do presente) e o espaço abstrato (do passado ou do futuro), que segundo Luis Alberto Brandão, em seu artigo Espaços literários e suas expansões, podem ser “partes autônomas, concretamente delimitadas, mas que podem estabelecer relações entre si”, ao mesmo tempo em que são também “a interação entre todas as partes, aquilo que lhes concede unidade, a qual só pode se dar em um espaço total, absoluto e abstrato, que é o espaço da obra” (BRANDÃO, 2007, p.210). Exemplo disso está em um dos fragmentos finais do romance, em que, por se encontrar em um angustiante espaço concreto, devastado pela guerra, Isilda imagina-se em uma reunião familiar na noite de Natal: ela cria um espaço abstrato onde realiza o seu grande desejo de estar junto à família. Vemos, então, o espaço da guerra e o outro da ceia de Natal se formarem como partes autônomas, a concreta e a abstrata, e mesmo assim manterem relações entre si, ao mesmo tempo em que se unem formando o espaço absoluto:

as paredes da sala, os bibelôs, os quadros a ecoarem segundo o ritmo das árvores e a cadência das ondas como o algodão durante o jantar quando o Fernando trouxer a canja, o peru, o bolo-rei, os sonhos, as fatias douradas, o espumante, o meu marido acender as velas do pinheiro, O Damião a amontoar os presentes contra a jarra (...) os tratores à porta do armazém, os pavios da senzala confundidos com as escamas do rio e as arestas da pedra onde as mulheres lavavam roupa de manhã, dizer ao Fernando que sirva a canja e o peru enquanto não me mandam subir ara a camionete com os restantes dos condenados (O.E.P, p. 373).

Outra importante característica estrutural da obra é a polifonia, que funciona como recurso para mostrar que nem o espaço, ao qual o homem está ligado, nem o próprio homem, possuem traços tão nítidos e acabados que possibilitem somente uma única visão ou um único entendimento a respeito deles, bastando somente um novo olhar para que formas consideradas prontas e imutáveis sejam desmontadas para depois serem remontadas diferentemente, sob outro foco. Enquanto Isilda faz digressões ao passado, ora porque não reconhece mais a sua casa depois da partida dos filhos para Portugal, ora porque não reconhece a cidade de Luanda, devido à Guerra que a transformou em “cidade dos defuntos”, os seus filhos se vêem presos ao espaço de Angola não somente pelo sentimento de nostalgia do que era e do que poderia ter sido, como se pode pensar, mas porque além de terem deixado inúmeras situações familiares mal resolvidas, percebem-se no presente em um espaço no qual não se sentem aceitos. Resta-lhes fugir para um espaço seguro no passado, ou idealizar o futuro. Carlos, por exemplo, para se livrar da solidão, idealiza a chegada de seus irmãos à ceia de Natal que preparou em sua casa, chegando ficar horas numa contagem obsessiva enquanto os espera:

eu a contar até cem, até quinhentos, até mil certo que viriam porque mandei um telegrama (...) o Rui daqui a nada no apartamento comigo a oferecer-me um porta-retratos ou um cinzeiro ou um livro, normalíssimo, de sapatos engraxados (...) a Clarisse que daqui a nada me vai saltar ao pescoço agradecida do perfume, (...) a Lena, a Clarisse e o Rui e eu quinze anos depois como se estivéssemos em África (O.E.P, pgs. 20, 38, 43 e 47).

Notamos, então, mais uma relevante função do elemento espaço e de suas sobreposições: a de apontar personagens incompletas e ambíguas, que buscam recordações e reflexões sobre outros tempos e espaços para, se não preencher, pelo menos tentar entender o vazio interior que lhes incomoda, oriundo talvez da falta de afetividade familiar e da ausência de um lugar próprio no mundo, muito bem expresso pelo pai de Isilda, que já previa a expulsão dos portugueses das terras africanas:

expulsos através dos angolanos pelos americanos, os russos, os franceses, os ingleses que não nos aceitam aqui para chegarmos a Lisboa onde não nos aceitam também, carambolando-nos de secretaria em secretaria e ministério em ministério por uma pensão do Estado, despachando-nos como fardos de quarto de aluguel em quarto de aluguel nos subúrbios da cidade (O.E.P, p. 244 e 245).

Seria, entretanto, um grande equívoco considerar que a função do espaço consiste principalmente em melhor caracterizar os personagens, ou seja, ressaltar e enfatizar as suas personalidades. Primeiro, porque, como já discutimos aqui, as personagens desse romance não são delimitadas, maniqueístas e imutáveis. Percebemos, por exemplo, mudanças comportamentais e psicológicas que se dão de forma gradativa em Isilda conforme ela avança no seu percurso pelo território angolano, de Malanje à Luanda. Os “caminhos” percorridos pelos três irmãos, que os levaram a se encontrarem na maneira como os conhecemos, isolados uns dos outros e ao mesmo tempo tão próximos, também são aos poucos revelados, visto que a narrativa é fragmentada e a narração dos mesmos se passa cronologicamente em apenas um dia, no Natal de 1995. Tal esclarecimento, segundo George Lukács, é indispensável, principalmente quando está diretamente relacionado ao enredo, como acontece em O Esplendor de Portugal:

Muitos escritores sentem a necessidade de tornar conhecida a vida íntima dos seus personagens: e isso, sem dúvida, já constitui um avanço. (...) esta vida íntima só pode, também, se tornar significativa, quando ligada ao entrecho de um romance, como premissa, etapa ou conseqüência de uma ação individual. Em si mesma, a descrição estática da vida íntima é tão natureza morta como a descrição das coisas. (LUKÁCS, 1968, p. 96).

Segundo, porque o espaço é, obviamente, essencial para o bom desenvolvimento do enredo historiográfico. Assim, há momentos na narrativa em que o espaço surge como denúncia da destruição acarretada pela guerra, e da crueldade humana, sendo descrito de forma bem nítida, para que fique bastante demarcada a diferença entre os dois espaços referentes ao mesmo lugar, como por exemplo, a cidade de Luanda:

Luanda era a cidade dos defuntos, ocupada da marginal aos musseques pelo cheiro e os vapores dos defuntos que afugentavam os vivos, mesmo os catangueses de colares de orelhas que se alimentavam de texugos, mesmo os cubanos que juravam alimentar-se de placentas de grávidas, mesmo os mendigos da baía que se alimentavam de si próprios com uma boca virada para dentro a mastigar a mastigar, como Luanda era a cidade dos defuntos (O.E.P, pgs. 316 e 317). Não pode ser Luanda porque não encontro a Samba Pequena, a Samba Grande, a Corimba, o barco do Mussulo. (p. 344)

A denúncia é igualmente bem realizada através da ironia presente na descrição da fazenda, por exemplo, ocupada pelos trabalhadores africanos, que se encontram em estado deplorável de saúde, higiene e, enfim, de direitos humanos básicos:

não se cansavam de morrer de ambiana mal chegavam em camionetes de gado, fingindo-se moídos da viagem para não trabalhar, desatavam logo com vômitos e febre, o administrador teimava que agonizavam de propósito, introduzia um cubo de gelo no anus do soba para servir de exemplo mas na quarta-feira já o soba estava morto e enterrado e os súditos, fidelíssimos, apressavam-se a copiá-lo (O.E.P, p. 17).

Torna-se redundante dizer, que, de acordo com algumas das características e das funções espaciais aqui denotadas, António Lobo Antunes alcançou profundidade em sua obra, pois, além de muitos outros fatores, não se prendeu a elementos superficiais no romance, como descrições exaustivas sobre o espaço exterior, da mesma maneira como não menosprezou esse espaço concreto, dando-lhe destaque, quando necessário para o bom desenvolvimento do enredo; assim como não se perdeu em digressões sem sentido ou que seriam dispensáveis a leitura da obra:

o grande escritor deve observar a vida com uma compreensão que não se limite à descrição da superfície exterior dela e nem se limite à colocação em relevo, feita abstratamente, dos fenômenos sociais: cumpre-lhe captar a relação íntima entre necessidade social e os acontecimentos da superfície, construindo um entrecho que seja a síntese poética dessa relação, a sua expressão concentrada (LUKÁCS, 1968, p. 95).

Podemos então dizer que o conhecimento do espaço do romance O Esplendor de Portugal ocorre ora através das lembranças do espaço pertencente à memória dos narradores-personagens de tempos passados em Angola, mostrando o quanto eles se encontram enraizados à terra africana, ora através da “volta” dos mesmos ao contexto atual, em Ajuda, seja por um ruído de carro que passa pela rua e alerta Carlos, que aguarda os irmãos ansiosamente, seja pelo desenho animado que passa na televisão e atrai a atenção de Rui ou pelo despertar de Clarisse, que dorme à janela. Aos poucos, o leitor conhece a sala da fazenda de Malanje, a sala do apartamento de Carlos, a clínica em que Rui se encontra internado e a sala da casa de Clarisse, por exemplo. O espaço não é descrito linearmente, pois não estaria de acordo com a estrutura fragmentada do romance; ele surge junto às ações dos personagens que nele atuam, mais narrado do que descrito. Não devemos esquecer de apontar para o caráter essencial de todos os objetos que preenchem o espaço e, por isso, não aparecem gratuitamente na narrativa. Sabemos que há estante com gavetas na sala, porque é nelas que Amadeu esconde as suas garrafas de bebidas alcoólicas, e é na bebida que ele se esconde da vida; tomamos conhecimento do grande relógio da fazenda de Malanje, porque é ele que mantém, como acreditava Carlos na sua infância, viva e segura a sua família, assim como vemos as máscaras decorativas na sala de Lena, porque essas falam a Clarisse. Logo, torna-se relevante dizer que os elementos espaciais representam sempre algo que diz respeito à história dos personagens. É na segurança da casa que os filhos de Isilda buscam se encontrar, voltando-se para a sua história, porque “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador (...) a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” (BACHELARD, p.23). É por isso que Isilda cria em sua mente, como uma fuga da realidade dura da guerra, uma “casa” em harmonia, pois essa é a maneira por ela encontrada para se proteger da realidade concreta. Enfatizamos, para concluir, a importância da sobreposição desses objetos, espaços, e por que não, narradores-personagens, na estrutura narrativa da obra, que contribuem para o chamado efeito de simultaneidade, permitindo uma apreensão mais complexa e ambígua sobre a realidade e sobre o ser que a ela pertence, tornando o romance um todo fragmentado, que possibilita diversas janelas de interpretação relacionadas à montagem desses fragmentos pelo leitor.

REFERÊNCIAL BIBLIOGRÁFICO
ANTUNES, Atónio Lobo. O Esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 19??.
BRANDÃO, Luis Alberto. Espaço literário e suas expansões. Separata de: Aletria: v. 15, p., 207-220, jan./jun, 2007.

DIMAS, Antônio. Espaço e romance.São Paulo: Ática, 1985
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LUKÁCS, George. Narrar e descrever_ in: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

LUKÁCS, George. A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo___ São Paulo: Editora 34, 2000.

ROSENFELD, Anatol. Texto e contexto. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1976.
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