segunda-feira, 4 de março de 2013

Ana Terra, Erico Veríssimo - Resumo e análise.


VERÍSSIMO, Erico. Ana Terra. 32ed. São Paulo: Globo, 1992. Coleção Aventura de Ler.

A história de Ana Terra

"Ali na estância a vida era triste e dura" (Ana Terra, p. 7)

A história de Ana Terra se desenvolve em meados do século XVIII e XIX, no interior do Sul do Brasil, em uma das estâncias da então capitania do Rio Grande de São Pedro. O cenário rural, pacato e hostil não surpreende, o leitor do romance de Érico Veríssimo, visto que são tempos de desbravamento e de guerras territoriais, nos quais ganham destaque os bandeirantes, os índios e também os castelhanos: os espanhóis que restavam ainda no território gaúcho e lutavam por ali permanecer.
Ana Terra, moça de 25 anos de idade, bonita e trabalhadeira, vai aos poucos, por meio do discurso indireto livre, ou seja, do revesamento sutil entre narrador em primeira e terceira pessoa, revelando os males do local e as suas insatisfações pessoais. Vinda de São Paulo para que o sonho de seu pai, que herdou do avô de Ana terra o anceio de viver no campo e para o campo, fosse realizado.
Desde o primeiro capítulo, a personagem demonstra grande pesar por ter sido obrigada a acompanhar a família para aquela estância e por isso sonha em se mudar para onde haja moças, rapazes, comércio... em outras palavras, onde haja vida para uma mulher da sua idade, repleta de energia e de desejos.
Não diferente encontran-se seus dois irmãos Horácio e Antônio, e até mesmo a sua mãe, Dona Henriqueta, que mesmo cansada também prefere a vida na cidade, mas, assim como os demais, procura se conformar com a escolha do patriarca, que tem sempre a palavra final.
Maneco Terra, ao contrário, vê no campo a esperança de encontrar a dignidade que lhes é negada no centros urbanos, vê a possibilidade de ser alguém numa terra de ninguém, já que nas cidades predomina o descaso e a injustiça de classes: "Lá só valia quem tinha um título, um posto militar ou então quem vestia batina. (...) O resto, o povinho, andava mal de barriga, de roupa e de tudo" (p. 42)

A vida no campo


"Sempre que acontece uma coisa importante está ventando" (p.7).

Porque não há relógio ou calendário, é pela observação da natureza que Ana mede o tempo que se passa e, da mesma forma, relaciona os eventos do cotidiano aos efeitos naturais, como por exemplo, os ventos, que surgem para anunciar novidades. Diferentemente dos poemas arcádicos, a vida no campo naquela época não é, para a família Terra, tão idílica assim: a natureza nem sempre tão receptiva àqueles que a modificam, leva Lucinho, irmão caçula de Ana, que é picado por uma cobra peçonhenta. Além disso, o cenário parece contaminar, como percebe a personagem, devido ao trabalho duro e incessante, que acontece desde o nascer até o pôr do sol, sem descanso ou surpresas, os homens da família: "Parecia que a terra ia se entranhando não só na pele como na alma deles".
Logo, como se já não bastassem a solidão, os perigos naturais e a rispidez do espaço, a família ainda vive sobressaltada aos ataques das tribos indígenas, que reagem com razão à invasão dos bandeirantes em suas terras; e aos ataques de ladrões e castelhanos, que, naqueles tempos, estavam sendo expulsos da colônia: "O pai de Ana costumava dizer que, quando via um leão ou baio ou uma jaquatirica, não se impressionava, (...) mas quando via aparecer homem estremecia" (p.8)


A vida da mulher no campo



1. É apenas mais um dia de trabalho. Ana desce a coxilha como costuma ser para lavar as roupas pesadas e admirar seu reflexo no único espelho que tem, as águas do poço, quando de repente é surpreendida por um homem desmaiado às margens da sanga. Esse homem chama-se Pedro, nome de origem no latim, apesar de suas características físicas denunciarem-no índio e sua fala um castelhano. Não se sabe ao certo de onde vem e de que lado está. Autodenomina-se "Missionário" e parece ter sido criado por padres. Recebe cuidados da família Terra, que mesmo temerosa, permite que fique na casa até que se recupere das feridas.
Pedro aparece na narrativa para desinstabilizar a rotina de todos. Maneco se vê ainda mais preocupado com a segurança de sua esposa e filhos. Enquanto a desconfiança toma conta de seus dias, a sexualidade e o desejo florecem em Ana Terra, que tenta conter seu olhar para os músculos do índio. Sua vida está agora menos desinteressante e há algo novo em que divagar enquanto cumpre suas tarefas diárias.
Devido a sua doçura e aptidão para o trabalho, além da boa conversa, tendo sempre uma nova história para contar, Pedro vai aos poucos adquirindo a confiança da família, com exceção de Maneco, que só o permite ali por causa das coveniências do labor.
Como não pode controlar o que se passa com seu corpo, quando na presença de Pedro, a atração que a personagem sente por ele se mistura à cólera e ao repúdio. Ana sabe que deseja e por isso, afasta, quando pode, o olhar do homem que a desinstabiliza fisicamente, fazendo-a tremer, tomando-a de muito calor. Se antes, sua vida era repetida e pacata, agora tudo se transformava para ela, os dias eram agoniantes e atormentados pelo pecado da carne. Pedro era o responsável por lhe fazer brotar pensamentos maus para uma mulher:

"A água do poço deveria estar fresca. Ana imaginou-se  mergulhada nela, sentiu os lambaris passarem por entre as pernas, roçarem-lhe os seios. E dentro da água agora deslizava a mão de Pedro a acariciar-lhe as coxas, mole e coleante como um peixe. Uma vergonha! O que ela queria era macho. (...) Os beiços de Pedro nos seus seios. (...) Oh! Mas ela odiava o índio. Tinha-lhe nojo. Pedro era sujo. Pedro era mau. Mas apesar de odiá-lo, não podia deixar de pensar no corpo dele, na cara dele, no cheiro dele..." (p.45)

  A Ana não é permitido querer tocar e ser tocada por um homem, não é permitido querer sentir mais de perto o seu cheiro, a  Ana não é permitido saciar aquela sede desconhecida, como faziam os irmãos quando iam a Rio Pardo, no norte. Ana é mulher, não lhe é permitido pensar ou escolher, o que se dirá se deitar com o índio e amar.
 Assim como o desejo e a vontade são inevitáveis, torna-se inevitável para os dois a sua concretude, e é em uma tarde ensolarada, no momento da cesta diária após o almoço, que Ana se dirige às proximidades do aposento de Pedro, lugar que antes sempre evitara. Tomada por um torpor misturado ao calor do local e ao calor de seu corpo não saciado, Ana percebe a presença de pedro que se aproxima cada vez mais. Uma batalha entre o não querer, pois é pecado para uma mulher, e o querer, porque, antes dos paradigmas sociais , é humana, é gente,  se inicia:

"Quis gritar, mas não gritou. Pensou em erguer-se mas não se ergueu. O sangue pulsava-lhe com mais força na cabeça. O peito arfava-lhe com mais ímpeto, mas a paralisia dos membros continuava. Tornou a fechar os olhos. E ouviu Pedro caminhar, aproximando-se num ruído de ramos quebrados, passos na água, seixos que se chocam. Apertava os lábios já agora com medo de gritar. Pedro estava tão perto que ela sentia sua presença na forma dum cheiro e dum bafo quente. Sentiu quando o corpo do índio desceu sobre o dela, soltou um gemido quando a mão dele lhe pousou num dos seios, e teve um arrepio quando essa mão lhe escorregou pelo ventre, entrou-lhe por debaixo da saia e subiu-lhe pelas coxas como uma grande aranha-caranguejeira. Numa raiva Ana agarrou com fúria os cabelos de Pedro, como se os quisesse arrancar." (p. 55 e 56).

 O sentimento de Ana, após a experiência sexual, muda: agora, em vez da raiva, o medo e a vergonha a dominam: "Ana conhecia casos de pais que matavam as filhas desonradas" (p. 57). No entanto, essas emoções extremamente compreensíveis, como se pode notar pelo fragmento destacado, não a impede de se encontrar, para os mesmos fins, com o índio.
 Infelizmente o caso não fica por muito tempo encoberto. Ana engravida e Pedro prevê a morte dele e se recusa a fugir: "Eu vi... Vi quando dois hombres enterram mi cuerpo cerca dum árbol. Demasiado tarde." (p.60). Notando a gravidez da filha, a que Pedro chamava "Rosa mística", Dona Henriqueta chora com Ana aos ouvidos do pai, que tudo escuta, e com Antônio e Horácio sai à procura do homem que a "desonrou". Assim Pedro é assassinado.

2. "Fosse como fosse, estava morta. Descansou - disse Ana para si mesma; e não teve pena da mãe." (p.79)

Dona Henriqueta tem sua morte narrada por meio de lembraças de Ana Terra. A aparente frieza comportamental da personagem perante o falecimento da mãe logo se desfaz quando o leitor se deixa envolver pela empatia por meio do discurso indireto livre:

 "Ana não chorou. Seus olhos ficaram secos e ela estava até alegre, porque sabia que a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava. Podia haver outra vida depois da morte, mas também podia não haver. Se houvesse, estava certa de que Dona Henriqueta iria para para o céu; se não houvesse, tudo ainda estava bem, porque sua mãe ia descansar para sempre. Não teria mais que cozinhar, ficar horas e horas pedalando a roca, em cima do estrado, fiando, suspirando e cantando as cantigas tristes de sua mocidade." (p.79)

Não obstante sentir-se feliz pela liberdade da mãe, é o sentimento de rancor e impiedade que possui pelo pai:

"Não sentia pena dele. Por que havia de ser fingida? Não sentia. Agora ele ia ver o quanto valia a mulher que Deus lhe dera. Agora teria que apoiar na nora ou nela, Ana, pois precisava de quem lhe fizesse comida, lavasse a roupa, cuidasse da casa. Precisava de alguém a quem pudesse dar ordens, como a uma criada." (p.79).

Pedrinho

"Bem como o pai. Sabe fazer coisas." (p.89)

 O fruto do amor interrompido de Ana Terra tem o nome do pai e, assim como ele, é desprezado pelos homens da família: bastardo, Pedrinho é motivo de vergonha para eles. Nada, porém, que o tempo não pudesse sanar. Aos poucos, o filho "bastardo" mostra-se uma criança prestativa, trabalhadora, inteligente e bastante conversada e vai cativando o coração mais duro de todos, do avô Maneco Terra, que assim como Horácio e Antônio, carrega na áurea a sombra e o isolamento emocional de quem praticou o mal, pois, mesmo pertencendo a uma sociedade que justificava o assassinato em casos de desonra, tem suas características comportamentais modificadas, que ao mesmo tempo que os une, afasta-os entre si pelo silêncio.
 O tempo parece dar uma trégua para o sofrimento daquele lugar e, depois de muito trabalho e decepções com a terra, a plantação de trigo, tão almejada por Maneco Terra, brota. Tal felicidade aproxima ainda mais avô e neto:

"Uma tarde, ao voltar da sanga, Ana viu Maneco Terra e o neto conversando animadamente na frente da casa como dois bons amigos. Falavam do trigo. Ela sorriu e entrou em casa de olhos baixos." (p.85)

 Além da perda da esposa, e do nascimento de Pedrinho, houve outras mudanças significativas, como a mudança de Horácio para Rio Pardo, onde se casou e abriu um negócio, sendo as duas situações contra a opinião do pai, e o casamento de Antônio com Eulália com quem teve um bebê.

Os castelhanos


A disputa pela posse do solo brasileiro se revela na crueldade conforme os castelhanos passam pelos vilarejos, destruindo coisas e pessoas. Tudo parecia melhorar para a família Terra: seu Maneco finalmente, depois de muita entrega ao seu pedacinho do mundo, consegue investir no milho, que responde positivamente à terra; avô e neto fazem amizade, os animais estão fortes e resistentes. O pior, entretanto, estava por vir.
É uma tarde como todas as outras, de sol e labor para Ana Terra, quando é sobressaltada pelos homens da família, que invadem a casa gritando: "Os castelhanos vêm aí!" (p.91). O pânico domina a todos: os homens armam-se como podem, e as mulheres são aconselhadas a fugir para a mata com as crianças. Infelizmente, o tempo é curto, e Ana Terra se predispõe ao sacrifício de permanecer junto aos homens na tentativa de evitar com que os assassinos, ao notar roupas de mulheres na casa, procurem por elas após o massacre dos homens: a morte era certa.
Os homens são mortos cruelmente, sem chances. Ana Terra, porém, não tem essa sorte, é violentada por dezenas de castelhanos:

"Ana sentiu que lhe erguiam o vestido. Abriu a boca e preparou-se para morder a primeira cara que se aproximasse da sua. Um homem caiu sobre ela. Num relâmpago Ana pensou em Pedro, um rechinar de cigarra atravessou-lhe a mente e entrou-lhe, agudo e sólido, pelas entranhas. Ela soltou um grito, fez um esforço para se erguer, mas não conseguiu. O homem resfolgava, o suor de seu rosto pingava no de Ana, que lhe cuspia nas faces, procurando ao mesmo tempo mordê-lo (Por que Deus não me mata?) Veio outro homem. E outro. E outro. E ainda outro. Ana já não resistia mais. Tinha a impressão de que lhe metiam adagas no ventre. Por fim perdeu os sentidos." (p. 95)

Após enterrar seus mortos, pai, irmão e dois escravos, Ana Terra parte com a família que lhe resta para uma longa peregrinação junto a outros sobreviventes em uma carroça. A trajetória espacial revela não só a vida de sofrimento físico e moral como também a marca de um recomeço. Agora Ana é livre: finalmente deixa o vilarejo ao qual nunca pertenceu e torna-se a chefe de sua família. A mulher humilhada pelo pai , pelo olhar dos irmãos e, pelo pior de todos, pelos catelhanos, ergue-se firme como e a terra, consciente de sua força e com o que lhe resta: a esperança de uma vida melhor:

"Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no Continente. Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com o medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula" (p.103)

Por ironia do destino, o massacre por que passara, transformava-se em redenção.

Mais vidas se perdem no caminho, porém encontram paz, pelo menos por um período, no novo vilarejo, antes que Pedrinho começasse a se ver obrigado a ir às guerras.

Ana se torna parteira e continua sua peregrinação sofrida, assim como todos daquela época, principalmente as mulheres, que veem pais, irmãos, maridos, futuros maridos e filhos partirem à defesa de interesses que não são seus, mas daqueles, que como dizia Maneco, mal os notavam nas grandes cidades, tratando-os com desprezo. Ana Terra chega a matar um homem para defender sua nova casa e, corajosa, enfrenta também, com seu pouco vocabulário, o chefe do vilarejo em prol de que não leve os homens para suas guerras. Ela é, porém, muito pequena, ou muito grande para ser entendida por um homem maduro, patriarca, porém tolo.
É sozinha, portanto, ouvindo seus ventos que acontece o desfecho do romance de Érico Veríssimo. Certo estava seu pai, senhor Maneco Terra, quando dizia que "Pátria é a casa da gente" (p. 12).

Últimas considerações

O romance de Veríssimo é fabuloso não apenas devido a contextualização histórica em que se desenvolve a narrativa, mas principalmente porque agrega quase que imperceptivelmente pensamento e mundo exterior. A rispidez do lugar está no coração de cada membro da família, nos traços físicos, no jeito de falar e nas reflexões de Ana Terra. A firmeza está nos nomes: Terra, terra onde é difícil sonhar, flutuar. A realidade é dura para os homens, todavia, são as mulheres que ganham destaque nesta aventura, as mulheres da terra, assim como Ana, que representa todas aquelas que não puderam escolher na vida, não tendo o direito de serem felizes.
Vejo este livro como uma grande homenagem aos nomes desconhecidos, à Marias, Antonietas, Joanas... às mulheres brasileiras tão esquecidas nos cantões deste país: elas ainda existem, não permanecem quietas e submissas no século XVIII e XIX, são silenciadas aqui, neste tempo ainda, o que faz deste romance ainda mais atual.
Percebemos a influência ainda do realismo com seu determinismo em alguns momentos, mas não predomina pelos curtos capítulos. O que se destaca é a alternância do foco narrativo, ora em primeira pessoa ora em terceira, ora objetivo ora subjetivo, característica importante do modernismo, que não impõem paradigmas.
História curta, porém rica de reflexões e emoção: uma excelente aventura para os corajosos que, por vezes, arriscam-se em um mundo novo: o mundo do desbravamento e do que ele causou, o mundo da mulher calada por fora, todavia eloquente em seu coração.