terça-feira, 2 de abril de 2013

Regras de acentuação


Abaixo segue o meu fichamento do 
estudo sobre acentuação gráfica, assunto que sabemos bem complexo, de Evanildo Bechara:


1. Monossílabos terminados em -a (s), -e (s), o (s) levam acento agudo ou circunflexo:

já, vá, vás, má, más (adj. - fem. de mau);
fé, pé, pés, lê, lês, vê, vês;
pó, pós, dó, sós, vó.

2. Oxítonas (palavras que possuem sua última sílaba tônica) que terminam com essas mesmas vogais também são acentuadas, acrescentando-se a este grupo a terminações - em, ens e os ditongos abertos -éis, -éu(s), -ói(s):

marajó (s), avô, avó (s); cajá, cajás, vatapá; café, chulé;
amÉM, ninguÉM, tambÉM, alÉM, armazÉNS;
herÓI(s), caubÓI(s), lençÓIS, vÉU, cÉU, anÉIS.

Também por não se encaixar na regra acima, não se diferenciam palavras homógrafas (mesma escrita) oxítonas por meio da acentuação gráfica, como ensina Bechara:

cor (ô: de cores: vermelho, amarelo) e cor (ó: de decorar);
colher (verbo) e colher (substantivo)

exceção: por (preposição), pôr (verbo).

A vogal -i, entretanto, é acentuadas em palavras oxítonas na forma verbal quando precedidas pelas formas dos pronomes oblíquos lo(s), la(las):

atraí-lo, traí-la, possuí-lo.

Da mesma forma, não só a vogal -i como a -u nas oxítonas serão acentuadas quando mesmo precedidas de ditongo decrescente encontram-se em posição final acompanhadas ou não de -s, com a condição de estarem SOZINHAS na sílaba:

 Grajaú (Gra-ja-ú: a sílaba está sozinha, além de formar hiato com a vogal anterior)
Piauí (Pi-au-í: a sílaba está sozinha), caí;
urubu ( -bu: a vogal não está sozinha, logo não é acentuada), Urubus (- bus), angu (- gu).



3. Paroxítonas (palavras com a penúltima sílaba tônica) que terminam com -i, -is, -us; -r, -l, -x, -n, -um, -uns, -ão, -ãos, -ã, -ãs, -ps, -on(s), ditongo oral átono decrescente ou crescente:

júrI, cáquI, lápIS, tênIS
caráteR, revólveR, éteR;
vênUS, vírUS, bônUS, ônUS;
responsáveL, útiL, amigáveL;
fêniX, tóraX;
éden (edenS - sem acento), hífen (hifenS - sem acento);
álbUM, álbUNS, médiUM, médiUNS;
órgÃO, órgÃOS, órfÃOS, órfÃ, órfÃS, ímÃ, imÃS;
bícePS, trícePS;
rádOM;
ágEIS, devêrEIS, jóquEI, mágOA, lírIO, régUA, tênUE.
(Verbos Arguir e Redarguir, entretanto, não têm acentuadas as suas vogais tônicas do radical; arguo, arguem, argua.)

Por que as palavras SUPER, SEMI e INTER, por exemplo, também não são acentuadas?
Bechara explica que, por serem prefixos paroxítonos, não possuem acentuação: super-homem, semi-histórico, inter-helênico.

Já os verbos AVERIGUAR, DELINQUIR  e afins podem ou não ser acentuados no seu radical, quando -a ou -i tônicos:

averigue, averígue; delinques, delínques, averiguo, averíguo.


ATENÇÃO: com as novas regras as paroxítonas compostas por ditongo aberto -ei, oi que não se encaixam na regra das terminações acima, não são mais acentuadas. Não confunda, porém, que as paroxítonas nesta mesma situação, compostas por ditongo aberto -ei, -oi que se encaixam na regra geral continuam sendo acentuadas:

ideia, heroico, epopeico, onomatopeia, apoio, apoia; (não possuem nenhuma das terminações citadas)

contêineR, blêizeR. (terminam em -R)

Não se distinguem mais pelo acento gráfico as paroxítonas homógrafas (com a mesma grafia/escrita) de artigos, contrações, preposições e conjunções átonas:

para (verbo parar), para (preposição);
pelo (substantivo), pelo (preposição);
pela (verbo pelar), pela (preposição);

exceção: fôrma (substantivo) - forma (substantivo e verbo) que o gramático aconselha acento apenas para evitar ambiguidade e pôde (pret. perf.) - pode (pres, ind.) .


Fogem à regra das terminações as paroxítonas que possuem -i, -u tônico, desde que não sejam precedidas de ditongo decrescente;


guaíba - (precede ditongo crescente);

feiura, cheiinho, tauismo (precede ditongo decrescente);


3. Todas as proparoxítonas (antepenúltima sílaba tônica) são acentuadas:

árvore, mármore,cômodo, fenômeno, biológico, lógica, tépido.

4. As vogais -i e -u também podem ser acentuadas se forem a segunda vogal tônica de um hiato, desde que não formem sílaba  com r, l, m, n, z e não antecedam -nh:

saúde, faísca, viúva, saída, caído, raízes;
raiNHa, moiNHo; ruiM; raiZ.

5. Lembre-se de que alguns verbos no singular não levam acento, como tem e vem, diferindo-se do seu plural, têm, vêm. Outros já têm seu acento mudado, como é o caso de contém, convém e contêm e convêm no plural.

Por outro lado, verbos que continuavam a ter acento no plural com o desdobramento das duas vogais, hoje, com as novas regras gramaticais, ficam sem acento no plural:

crê - creem
vê - veem
revê - reveem

O que acontece também com substantivos como voo.





Referência bibliográfica:

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ed. rev. ampl. e atual. conforme o novo Acordo Ortográfico. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.



Questões de concurso que podem nos ajudar a fixar o assunto:

1. CEPERJ - 2012:
A palavra “construído” recebe acento gráfico pelo mesmo motivo que a palavra:


a) mídia
b) saúde
c) sábios
d) disponíveis
e) imaginário

 2. EPERJ - 2012: A palavra do texto que teve sua grafia alterada pelo mais recente acordo ortográfico é:

a) mídias
b) álcool
c) trás
d) estresse
e) ideia

3. CEPERJ - 2012: A palavra “variáveis” recebe acento gráfico por atender exatamente aos mesmos critérios que a seguinte palavra:

a) vírus 
b) fútil
c) homicídio
d) caráter 
e) razoável

4. CESPE - 2007: Foi empregada a mesma regra de acentuação gráfica nas palavras: “farmacêutica”, “fármacos” e “científicos”.

Certo ( )
Errado  ( )

5. IESES - 2012: Assinale a alternativa com ERRO de acentuação.


a) À medida que se distancia, o ímã deixa de atrair o metal.
b) Aquele guri pareceu não entender a rubrica do diretor. 
c) O advogado redargui com propriedade durante o júri de seu cliente, o réu.
d) O ítem do acordo relacionado à acentuação gráfica foi respeitado. 

6. CESGRANRIO - 2013: O grupo em que ambas as palavras devem ser acentuadas de acordo com as regras de acentuação vigentes na língua portuguesa é
 
a) aspecto, inicio
b) instancia, substantivo 
c) inocente, maiuscula
d) consciente, ritmo 
e) frequencia, areas

Gabarito 1-b; 2-e; 3-c; 4-certo; 5.-d; 6-e;







segunda-feira, 4 de março de 2013

Ana Terra, Erico Veríssimo - Resumo e análise.


VERÍSSIMO, Erico. Ana Terra. 32ed. São Paulo: Globo, 1992. Coleção Aventura de Ler.

A história de Ana Terra

"Ali na estância a vida era triste e dura" (Ana Terra, p. 7)

A história de Ana Terra se desenvolve em meados do século XVIII e XIX, no interior do Sul do Brasil, em uma das estâncias da então capitania do Rio Grande de São Pedro. O cenário rural, pacato e hostil não surpreende, o leitor do romance de Érico Veríssimo, visto que são tempos de desbravamento e de guerras territoriais, nos quais ganham destaque os bandeirantes, os índios e também os castelhanos: os espanhóis que restavam ainda no território gaúcho e lutavam por ali permanecer.
Ana Terra, moça de 25 anos de idade, bonita e trabalhadeira, vai aos poucos, por meio do discurso indireto livre, ou seja, do revesamento sutil entre narrador em primeira e terceira pessoa, revelando os males do local e as suas insatisfações pessoais. Vinda de São Paulo para que o sonho de seu pai, que herdou do avô de Ana terra o anceio de viver no campo e para o campo, fosse realizado.
Desde o primeiro capítulo, a personagem demonstra grande pesar por ter sido obrigada a acompanhar a família para aquela estância e por isso sonha em se mudar para onde haja moças, rapazes, comércio... em outras palavras, onde haja vida para uma mulher da sua idade, repleta de energia e de desejos.
Não diferente encontran-se seus dois irmãos Horácio e Antônio, e até mesmo a sua mãe, Dona Henriqueta, que mesmo cansada também prefere a vida na cidade, mas, assim como os demais, procura se conformar com a escolha do patriarca, que tem sempre a palavra final.
Maneco Terra, ao contrário, vê no campo a esperança de encontrar a dignidade que lhes é negada no centros urbanos, vê a possibilidade de ser alguém numa terra de ninguém, já que nas cidades predomina o descaso e a injustiça de classes: "Lá só valia quem tinha um título, um posto militar ou então quem vestia batina. (...) O resto, o povinho, andava mal de barriga, de roupa e de tudo" (p. 42)

A vida no campo


"Sempre que acontece uma coisa importante está ventando" (p.7).

Porque não há relógio ou calendário, é pela observação da natureza que Ana mede o tempo que se passa e, da mesma forma, relaciona os eventos do cotidiano aos efeitos naturais, como por exemplo, os ventos, que surgem para anunciar novidades. Diferentemente dos poemas arcádicos, a vida no campo naquela época não é, para a família Terra, tão idílica assim: a natureza nem sempre tão receptiva àqueles que a modificam, leva Lucinho, irmão caçula de Ana, que é picado por uma cobra peçonhenta. Além disso, o cenário parece contaminar, como percebe a personagem, devido ao trabalho duro e incessante, que acontece desde o nascer até o pôr do sol, sem descanso ou surpresas, os homens da família: "Parecia que a terra ia se entranhando não só na pele como na alma deles".
Logo, como se já não bastassem a solidão, os perigos naturais e a rispidez do espaço, a família ainda vive sobressaltada aos ataques das tribos indígenas, que reagem com razão à invasão dos bandeirantes em suas terras; e aos ataques de ladrões e castelhanos, que, naqueles tempos, estavam sendo expulsos da colônia: "O pai de Ana costumava dizer que, quando via um leão ou baio ou uma jaquatirica, não se impressionava, (...) mas quando via aparecer homem estremecia" (p.8)


A vida da mulher no campo



1. É apenas mais um dia de trabalho. Ana desce a coxilha como costuma ser para lavar as roupas pesadas e admirar seu reflexo no único espelho que tem, as águas do poço, quando de repente é surpreendida por um homem desmaiado às margens da sanga. Esse homem chama-se Pedro, nome de origem no latim, apesar de suas características físicas denunciarem-no índio e sua fala um castelhano. Não se sabe ao certo de onde vem e de que lado está. Autodenomina-se "Missionário" e parece ter sido criado por padres. Recebe cuidados da família Terra, que mesmo temerosa, permite que fique na casa até que se recupere das feridas.
Pedro aparece na narrativa para desinstabilizar a rotina de todos. Maneco se vê ainda mais preocupado com a segurança de sua esposa e filhos. Enquanto a desconfiança toma conta de seus dias, a sexualidade e o desejo florecem em Ana Terra, que tenta conter seu olhar para os músculos do índio. Sua vida está agora menos desinteressante e há algo novo em que divagar enquanto cumpre suas tarefas diárias.
Devido a sua doçura e aptidão para o trabalho, além da boa conversa, tendo sempre uma nova história para contar, Pedro vai aos poucos adquirindo a confiança da família, com exceção de Maneco, que só o permite ali por causa das coveniências do labor.
Como não pode controlar o que se passa com seu corpo, quando na presença de Pedro, a atração que a personagem sente por ele se mistura à cólera e ao repúdio. Ana sabe que deseja e por isso, afasta, quando pode, o olhar do homem que a desinstabiliza fisicamente, fazendo-a tremer, tomando-a de muito calor. Se antes, sua vida era repetida e pacata, agora tudo se transformava para ela, os dias eram agoniantes e atormentados pelo pecado da carne. Pedro era o responsável por lhe fazer brotar pensamentos maus para uma mulher:

"A água do poço deveria estar fresca. Ana imaginou-se  mergulhada nela, sentiu os lambaris passarem por entre as pernas, roçarem-lhe os seios. E dentro da água agora deslizava a mão de Pedro a acariciar-lhe as coxas, mole e coleante como um peixe. Uma vergonha! O que ela queria era macho. (...) Os beiços de Pedro nos seus seios. (...) Oh! Mas ela odiava o índio. Tinha-lhe nojo. Pedro era sujo. Pedro era mau. Mas apesar de odiá-lo, não podia deixar de pensar no corpo dele, na cara dele, no cheiro dele..." (p.45)

  A Ana não é permitido querer tocar e ser tocada por um homem, não é permitido querer sentir mais de perto o seu cheiro, a  Ana não é permitido saciar aquela sede desconhecida, como faziam os irmãos quando iam a Rio Pardo, no norte. Ana é mulher, não lhe é permitido pensar ou escolher, o que se dirá se deitar com o índio e amar.
 Assim como o desejo e a vontade são inevitáveis, torna-se inevitável para os dois a sua concretude, e é em uma tarde ensolarada, no momento da cesta diária após o almoço, que Ana se dirige às proximidades do aposento de Pedro, lugar que antes sempre evitara. Tomada por um torpor misturado ao calor do local e ao calor de seu corpo não saciado, Ana percebe a presença de pedro que se aproxima cada vez mais. Uma batalha entre o não querer, pois é pecado para uma mulher, e o querer, porque, antes dos paradigmas sociais , é humana, é gente,  se inicia:

"Quis gritar, mas não gritou. Pensou em erguer-se mas não se ergueu. O sangue pulsava-lhe com mais força na cabeça. O peito arfava-lhe com mais ímpeto, mas a paralisia dos membros continuava. Tornou a fechar os olhos. E ouviu Pedro caminhar, aproximando-se num ruído de ramos quebrados, passos na água, seixos que se chocam. Apertava os lábios já agora com medo de gritar. Pedro estava tão perto que ela sentia sua presença na forma dum cheiro e dum bafo quente. Sentiu quando o corpo do índio desceu sobre o dela, soltou um gemido quando a mão dele lhe pousou num dos seios, e teve um arrepio quando essa mão lhe escorregou pelo ventre, entrou-lhe por debaixo da saia e subiu-lhe pelas coxas como uma grande aranha-caranguejeira. Numa raiva Ana agarrou com fúria os cabelos de Pedro, como se os quisesse arrancar." (p. 55 e 56).

 O sentimento de Ana, após a experiência sexual, muda: agora, em vez da raiva, o medo e a vergonha a dominam: "Ana conhecia casos de pais que matavam as filhas desonradas" (p. 57). No entanto, essas emoções extremamente compreensíveis, como se pode notar pelo fragmento destacado, não a impede de se encontrar, para os mesmos fins, com o índio.
 Infelizmente o caso não fica por muito tempo encoberto. Ana engravida e Pedro prevê a morte dele e se recusa a fugir: "Eu vi... Vi quando dois hombres enterram mi cuerpo cerca dum árbol. Demasiado tarde." (p.60). Notando a gravidez da filha, a que Pedro chamava "Rosa mística", Dona Henriqueta chora com Ana aos ouvidos do pai, que tudo escuta, e com Antônio e Horácio sai à procura do homem que a "desonrou". Assim Pedro é assassinado.

2. "Fosse como fosse, estava morta. Descansou - disse Ana para si mesma; e não teve pena da mãe." (p.79)

Dona Henriqueta tem sua morte narrada por meio de lembraças de Ana Terra. A aparente frieza comportamental da personagem perante o falecimento da mãe logo se desfaz quando o leitor se deixa envolver pela empatia por meio do discurso indireto livre:

 "Ana não chorou. Seus olhos ficaram secos e ela estava até alegre, porque sabia que a mãe finalmente tinha deixado de ser escrava. Podia haver outra vida depois da morte, mas também podia não haver. Se houvesse, estava certa de que Dona Henriqueta iria para para o céu; se não houvesse, tudo ainda estava bem, porque sua mãe ia descansar para sempre. Não teria mais que cozinhar, ficar horas e horas pedalando a roca, em cima do estrado, fiando, suspirando e cantando as cantigas tristes de sua mocidade." (p.79)

Não obstante sentir-se feliz pela liberdade da mãe, é o sentimento de rancor e impiedade que possui pelo pai:

"Não sentia pena dele. Por que havia de ser fingida? Não sentia. Agora ele ia ver o quanto valia a mulher que Deus lhe dera. Agora teria que apoiar na nora ou nela, Ana, pois precisava de quem lhe fizesse comida, lavasse a roupa, cuidasse da casa. Precisava de alguém a quem pudesse dar ordens, como a uma criada." (p.79).

Pedrinho

"Bem como o pai. Sabe fazer coisas." (p.89)

 O fruto do amor interrompido de Ana Terra tem o nome do pai e, assim como ele, é desprezado pelos homens da família: bastardo, Pedrinho é motivo de vergonha para eles. Nada, porém, que o tempo não pudesse sanar. Aos poucos, o filho "bastardo" mostra-se uma criança prestativa, trabalhadora, inteligente e bastante conversada e vai cativando o coração mais duro de todos, do avô Maneco Terra, que assim como Horácio e Antônio, carrega na áurea a sombra e o isolamento emocional de quem praticou o mal, pois, mesmo pertencendo a uma sociedade que justificava o assassinato em casos de desonra, tem suas características comportamentais modificadas, que ao mesmo tempo que os une, afasta-os entre si pelo silêncio.
 O tempo parece dar uma trégua para o sofrimento daquele lugar e, depois de muito trabalho e decepções com a terra, a plantação de trigo, tão almejada por Maneco Terra, brota. Tal felicidade aproxima ainda mais avô e neto:

"Uma tarde, ao voltar da sanga, Ana viu Maneco Terra e o neto conversando animadamente na frente da casa como dois bons amigos. Falavam do trigo. Ela sorriu e entrou em casa de olhos baixos." (p.85)

 Além da perda da esposa, e do nascimento de Pedrinho, houve outras mudanças significativas, como a mudança de Horácio para Rio Pardo, onde se casou e abriu um negócio, sendo as duas situações contra a opinião do pai, e o casamento de Antônio com Eulália com quem teve um bebê.

Os castelhanos


A disputa pela posse do solo brasileiro se revela na crueldade conforme os castelhanos passam pelos vilarejos, destruindo coisas e pessoas. Tudo parecia melhorar para a família Terra: seu Maneco finalmente, depois de muita entrega ao seu pedacinho do mundo, consegue investir no milho, que responde positivamente à terra; avô e neto fazem amizade, os animais estão fortes e resistentes. O pior, entretanto, estava por vir.
É uma tarde como todas as outras, de sol e labor para Ana Terra, quando é sobressaltada pelos homens da família, que invadem a casa gritando: "Os castelhanos vêm aí!" (p.91). O pânico domina a todos: os homens armam-se como podem, e as mulheres são aconselhadas a fugir para a mata com as crianças. Infelizmente, o tempo é curto, e Ana Terra se predispõe ao sacrifício de permanecer junto aos homens na tentativa de evitar com que os assassinos, ao notar roupas de mulheres na casa, procurem por elas após o massacre dos homens: a morte era certa.
Os homens são mortos cruelmente, sem chances. Ana Terra, porém, não tem essa sorte, é violentada por dezenas de castelhanos:

"Ana sentiu que lhe erguiam o vestido. Abriu a boca e preparou-se para morder a primeira cara que se aproximasse da sua. Um homem caiu sobre ela. Num relâmpago Ana pensou em Pedro, um rechinar de cigarra atravessou-lhe a mente e entrou-lhe, agudo e sólido, pelas entranhas. Ela soltou um grito, fez um esforço para se erguer, mas não conseguiu. O homem resfolgava, o suor de seu rosto pingava no de Ana, que lhe cuspia nas faces, procurando ao mesmo tempo mordê-lo (Por que Deus não me mata?) Veio outro homem. E outro. E outro. E ainda outro. Ana já não resistia mais. Tinha a impressão de que lhe metiam adagas no ventre. Por fim perdeu os sentidos." (p. 95)

Após enterrar seus mortos, pai, irmão e dois escravos, Ana Terra parte com a família que lhe resta para uma longa peregrinação junto a outros sobreviventes em uma carroça. A trajetória espacial revela não só a vida de sofrimento físico e moral como também a marca de um recomeço. Agora Ana é livre: finalmente deixa o vilarejo ao qual nunca pertenceu e torna-se a chefe de sua família. A mulher humilhada pelo pai , pelo olhar dos irmãos e, pelo pior de todos, pelos catelhanos, ergue-se firme como e a terra, consciente de sua força e com o que lhe resta: a esperança de uma vida melhor:

"Mas queria viver também de raiva, de birra. A sorte andava sempre contra ela. Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no Continente. Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com o medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto... Tudo isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula" (p.103)

Por ironia do destino, o massacre por que passara, transformava-se em redenção.

Mais vidas se perdem no caminho, porém encontram paz, pelo menos por um período, no novo vilarejo, antes que Pedrinho começasse a se ver obrigado a ir às guerras.

Ana se torna parteira e continua sua peregrinação sofrida, assim como todos daquela época, principalmente as mulheres, que veem pais, irmãos, maridos, futuros maridos e filhos partirem à defesa de interesses que não são seus, mas daqueles, que como dizia Maneco, mal os notavam nas grandes cidades, tratando-os com desprezo. Ana Terra chega a matar um homem para defender sua nova casa e, corajosa, enfrenta também, com seu pouco vocabulário, o chefe do vilarejo em prol de que não leve os homens para suas guerras. Ela é, porém, muito pequena, ou muito grande para ser entendida por um homem maduro, patriarca, porém tolo.
É sozinha, portanto, ouvindo seus ventos que acontece o desfecho do romance de Érico Veríssimo. Certo estava seu pai, senhor Maneco Terra, quando dizia que "Pátria é a casa da gente" (p. 12).

Últimas considerações

O romance de Veríssimo é fabuloso não apenas devido a contextualização histórica em que se desenvolve a narrativa, mas principalmente porque agrega quase que imperceptivelmente pensamento e mundo exterior. A rispidez do lugar está no coração de cada membro da família, nos traços físicos, no jeito de falar e nas reflexões de Ana Terra. A firmeza está nos nomes: Terra, terra onde é difícil sonhar, flutuar. A realidade é dura para os homens, todavia, são as mulheres que ganham destaque nesta aventura, as mulheres da terra, assim como Ana, que representa todas aquelas que não puderam escolher na vida, não tendo o direito de serem felizes.
Vejo este livro como uma grande homenagem aos nomes desconhecidos, à Marias, Antonietas, Joanas... às mulheres brasileiras tão esquecidas nos cantões deste país: elas ainda existem, não permanecem quietas e submissas no século XVIII e XIX, são silenciadas aqui, neste tempo ainda, o que faz deste romance ainda mais atual.
Percebemos a influência ainda do realismo com seu determinismo em alguns momentos, mas não predomina pelos curtos capítulos. O que se destaca é a alternância do foco narrativo, ora em primeira pessoa ora em terceira, ora objetivo ora subjetivo, característica importante do modernismo, que não impõem paradigmas.
História curta, porém rica de reflexões e emoção: uma excelente aventura para os corajosos que, por vezes, arriscam-se em um mundo novo: o mundo do desbravamento e do que ele causou, o mundo da mulher calada por fora, todavia eloquente em seu coração.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Moinho




Esperava achá-lo feio como na primeira vez em que o viu, mas ele estava de costas e grande foi a decepção por notá-lo ainda mais bonito. Cruzou rapidamente o pátio da escola, porque sabia que ele daria aula às nove, e ficou aguardando do lado de fora do prédio pela sua passagem. Em câmera lenta, mas fugaz, com um embrulho na mão, os cabelos amarrados, os olhos azuis a mirarem-na por um único instante, que não se agarra com as mãos, mas com o coração... triste, visto que já se desviou sem notar os olhos que o acompanharam fixamente.
O ir para a escola se tornou outro: nunca mais se esteve na sala de aula. A vida era agora esperar, como uma grávida, esperava por ele, esperava-o, dentro de si, mesmo estando ele fora.
E como explicar que o amor existe no mundo de carne e carne dos adolescentes? E como mostrar aos demais que não se tratava daquilo, mas de um querer doído e bom que não acaba nem quando ela não mais o pode ver, com os olhos? O amor era tão forte, tão intenso que precisava se livrar dele, senão morreria, ah! morreria... morreria com gosto, agonizando eternamente... como morriam as donzelas de Shakespeare.
E para não morrer escreveu, escreveu, escreveu, deitando nos papéis o seu amor escondido e covarde, porque os papéis não tinham que entender nada, porém a julgariam mais tarde pela falta de atitude. Mas que atitude se pode ter quando se é apenas uma adoscescente perante um homem? São mil tabus e um milhão de preconceitos contra o grande, enorme, imensurável amor de uma adolescente, visto como uma paixonite da idade.
Esperava não sentir mais aquele saudosismo do que não foi quando ele passou... mas sentiu... inevitável. Mais um ser humano derrotado pelo amor. Uma adolescente derrotada, sentiu.


Marcela Teixeira Barbosa

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O peregrino do ser em "Peregrinação de Barnabé das Índias", um romance de Mário Cláudio

Profeta Amós, Gustave Doré



I. Introdução

Peregrinação de Barnabé das Índias é o romance do escritor contemporâneo português Mário Cláudio, nascido em 1941, na cidade do Porto, e o objeto,deste trabalho que conta a história de dois instigantes personagens: Vasco da Gama, obviamente uma reconstrução do grande herói lusitano dos séculos XV e XVI, capitão da armada que desvendou o caminho marítimo para as Índias; e Barnabé, esse totalmente fictício, judeu nascido em Ucanha e marujo da nau São Rafael.

A partir dessas informações e do título do livro, podemos deduzir que o enredo se desenvolve tendo como foco principal a “peregrinação” - a vida - do homem, que, na obra analisada, caracteriza-se, dentre muitas outras coisas, por encontrar-se à margem da sociedade.

Barnabé aparece pela primeira vez aos olhos do leitor vestindo andrajos e já bastante idoso. Ele surge como um pedinte à porta da casa de seu antigo comandante Vasco da Gama, que, além de velho, encontra-se com problemas de saúde. O encontro entre os dois é o ponto de partida para o desenrolar dos próximos capítulos, que são construídos já em outro tempo e outros espaços. As Neves, primeiro capítulo do romance, apresenta os respectivos personagens e introduz a história pelo fim que está próximo: a morte. A essa altura ambos já percorreram um longo percurso.

Caracterizada pela fragmentação, a narrativa não se limita à fronteiras fixas entre tempo e espaço, logo o leitor se verá circulando entre o presente e o passado dos personagens, como acontece em As Neves, em que somos transportados da velhice de Vasco da Gama para a sua infância. No decorrer da história, todavia, o tempo tende a se estabilizar no passado ao encontro dos personagens, e a seguir a trajetória de ambos até que se chegue novamente à velhice dos dois.

Outro elemento significativamente relevante na composição da história, e que continua a variar, é o foco narrativo, ora em primeira pessoa, Barnabé, ora em terceira. Esses se intercalam grande parte do enredo, possibilitando aos leitores realizar a sua própria “peregrinação” pela história escrita por Mário Cláudio, visto que podem ocupar diferentes posições: acompanhando o narrador onisciente estamos ora como que à espreita, distanciados o suficiente para conhecermos os afazeres e o exterior dos personagens, ora próximos em demasia, espionando o que se passa dentro dos mesmos, os seus mais profundos sentimentos, sejam esses nobres ou constrangedores. Ao lermos, porém, o narrador-personagem, temos uma interpretação que se tece do interior para o exterior, e não o contrário, ou seja, tudo parte da visão do personagem sobre o que ele vive e presencia. Isso significa que conhecemos os fatos a partir de suas crenças, suas emoções, suas convicções sobre o mundo que o cerca, o que quer dizer que estamos ainda mais próximos do mesmo e de suas experiências. Sentimos maior proximidade com o mesmo: ele se revela diretamente para nós.

A troca de narradores, comum nas obras de Mário Cláudio, é um importante fator para que as situações vividas pelos personagens, assim como eles próprios, sejam mais explorados, já que permite a movimentação, ou pelo menos dá essa impressão, do leitor pelo que é narrado por diferentes ângulos. Tal recurso auxilia a elevação da reconstrução da experiência humana ao máximo, o que, segundo Walter Benjamim, deve ocorrer na forma romance: “Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza o romance anuncia a profunda perplexidade de quem o vive” (BENJAMIM, 1985. p. 201).

Podemos, portanto, dizer que em Peregrinação de Barnabé das Índias o leitor embarca nas “viagens”[1] junto aos personagens, percorrendo pelos mais densos questionamentos inerentes ao homem: o sentido da vida e a origem e superação, ou não, de seus medos.

O início da passagem de qualquer ser humano pela vida começa obviamente na infância, a partir do momento em que nos conscientizamos de nossa existência. Nem Vasco da Gama tampouco Barnabé das Índias tiveram um começo marcado pela segurança e estabilidade entre as relações afetivas. Aquele é separado muito cedo de seu pai, Estevão, por ser considerado traidor do reino. O futuro capitão da São Rafael presencia não apenas a humilhação tanto física quanto moral daquele que lhe pôs no mundo, como também o desespero de seu irmão Paulo da Gama após à morte de seu pai, manifestado pelo estranho comportamento de sempre atravessar a nado a Praia Nova, levando a sociedade a vê-lo como louco:

Mas quando vieram buscar Estevão, seu pai, foi como se um búzio se tivesse estilhaçado, e o eco do mar se calasse para sempre. (...) E por uma fresta da porta viu passar o autor de seus dias, escoltado por dois gigantes que à compita lhe arrepelavam os cabelos, e o insultavam de judeu, de bonitrate e traidor. (...) Doía-se do afastamento do irmão (...) que afirmavam ter endoidecido e viver numa cisma de morte e redenção, a grandes braçadas nadando contra redemoinhos funestos da Praia Nova (CLÁUDIO, 1998, pgs. 26, 27 e 28).

Não busca este trabalho justificativas, através das experiências da infância, para o medo e a insegurança que se apossarão de Vasco da Gama por toda a vida, mas nos interessa apontá-los como características próprias não só desse personagem, mas do homem, cabendo a cada um ou superá-las e ascender como criaturas, ou tornar-se prisioneiro delas, como acontece com aquele: “Mas assola-lhe um caos a inteireza da envergadura, e torcem-ce-lhe os intestinos, num espasmo sem saída, e defluem as correntezas da transpiração a perlar-lhe as barbas sem cãs de cavaleiro de vinte e nove anos” (CLÁUDIO, p. 26).

É no seu irmão Paulo da Gama que deposita o comandante a sua auto-confiança:

Um pacto secreto parecia unificar dois deles, patenteando-se ao menos sensível que se não cada um sem a sombra fraternal. (...) A passos longuíssimos marchava como se não bastantemente seguro das suas obrigações, e após a frase dirigida a um capataz buscava os olhos do irmão Paulo que a curta distância o ia seguindo (CLÁUDIO, p. 100).

O clima de insegurança será, conseqüentemente, agravado, “Pouco a pouco compreendera que andava o pânico que o transtornava a contaminar a população” (CLÁUDIO, p. 39). Além disso, o percurso para a Índia será marcado pelo ambiente confuso e cheio de hostilidades na relação tanto hierárquica, em que os marujos são tratados com desprezo e alcunhados pelos superiores, quanto entre os próprios marujos:

e se nos pregavam pontapé, o que a todo instante se sucedia, porfiávamos por permanecer mudos, e de ligeiro semblante, e apenas falta que nos impusessem que agradecêssemos as velhacarias com quem descaso nos tratavam (CLÁUDIO, p. 128)

À altura do trecho acima citado, Barnabé, que nesse momento narra a história, já se encontra como marujo, embarcado na nau São Rafael, onde se está também Vasco da Gama como se sabe, todavia diversos foram os tipos de “trabalhos” realizados pelo judeu.

Também é cedo que Barnabé se depara com a morte: seu amigo André Medes morre afogado durante uma algazarra, coisa rotineira entre os amigos, no rio Varosa. Chocado com o a fatalidade, o menino de Ucanha sofre grande turbulência interior, manifestada pelos seus pesadelos e seu comportamento, o que o leva a ser até mesmo exorcizado[2].

A partir daí, longa será a peregrinação do judeu, que passará tanto por diferentes lugares concretos (de Ucanha para Lamego, de Lamego para Lisboa e dessa para os mares), quanto por diferentes níveis de experiência como sujeito fazedor de sua história, o que é de maior interesse para este trabalho. Em outras palavras, pretende-se, através deste, peregrinar junto a Barnabé das Índias, sem deixar, contudo, de analisar Vasco da Gama, traçando um paralelo entre os dois, pelas suas reflexões e transformações interiores ao longo dessa extensa e fugaz viagem que é a vida.

Antes de prosseguirmos não poderíamos de deixar de dizer que ler Peregrinação de Barnabé das Índias é também uma superação em termos de dificuldade de leitura para o leitor, sendo a narrativa bastante densa, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto aos recursos textuais.

A linguagem utilizada pelo autor causa estranhamento, pois como os períodos são muito longos, com muitos hipérbatos e a pontuação não se dá de maneira convencional, mas segue um determinado ritmo, o da memória, como diz o próprio autor em entrevista ao ser questionado sobre a sua forma de escrita no romance, “É a forma como a nossa memória funciona. A memória tem uma metodologia muito própria” (informação verbal)[3], o leitor pode se perder por qualquer distração. Além disso, a narrativa está repleta de apostos e referências, divagações e entrelinhas e claro arcaísmos como “futurar”, “por mor de”, “à puridade” dentre outros. Apesar de todos esses traços, não podemos dizer que a linguagem encontrada no romance é a busca de uma reprodução fiel à da época, quando foi, na verdade, como disse Mário Cláudio, uma busca a “uma atmosfera lingüística”, e mais à frente esclarece: “Pretendi oferecer um equivalente plástico, em termos lingüísticos, daquilo que seria a linguagem da época, mas sem abdicar dos termos dos nossos dias”[4].

II. “O peregrino do ser”[5]

Saberás tu, Barnabé, que não tem foz o nosso rio, e que se estreita, quando pensamos ter chegado ao sítio onde termina, e que forma outros cursos, e cada qual em outros vários se espalha, e será assim por infindável tempo até o Juízo Final (CLÁUDIO, 1998, p. 61).

A epígrafe acima constitui parte dos dizeres póstumos de André Mendes. O morto aparece em sonho a seu amigo Barnabé revelando-lhe, metaforicamente, o dilema universal do ser humano: a dicotomia vida e morte. Podemos, num primeiro momento, interpretar a fala de André como a descrição do processo que tanto angustia o homem, visto que é inevitável: o tempo. Independentemente da forma como é vivido, o fim será sempre a morte. O sonho também pode ser lido como uma mera representação da conscientização de Barnabé sobre a condição de ser no mundo. Com a fatalidade, o menino de Ucanha despertou para a vida e seus mistérios, para a sua finitude. Nada impede que o sonho seja entendido pelas duas maneiras concomitantemente, pois os recursos narrativos utilizados tecem um enredo que não impõe uma verdade ao leitor, mas o aponta inúmeros caminhos de interpretação, sendo a própria estrutura textual um labirinto para o mesmo:

O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1985, p. 203).

A escrita, assim como a dicotomia vida e morte, é labiríntica. Os parágrafos são longos e a linguagem, por vezes insólita e enigmática, precisa ser decifrada. Notamos já na forma romance da obra de Mário Cláudio estudada neste trabalho características relevantes da imagem barroca de labirinto sobre qual fala Romano Sant’ana:

O labirinto não existe apenas como desenho, como jogo, como enigma. Tem uma conotação existencial. Ele só existe porque outro personagem o percorre, que é esse peregrino, esse ser peripatético, que aparece perdido, vagando daqui para ali” (SANT’ANA, 2000, p, 66).

Em Peregrinação de Barnabé das Índias, Barnabé é o “homo viator”, construído por essa narrativa labiríntica, que percorrerá desde os mais largos aos mais estreitos corredores da vida junto ao leitor que o acompanhará. É Barnabé “A imagem do peregrino [que][6] está geminada a outras imagens barrocas que indicam movimento, trânsito, peripécia, instabilidade” ( SANT’ANA, 2000, p. 67). O personagem, assim como nós, se depara num mundo em que é condenado a agir, porque tudo que o cerca, inclusive ele próprio, se encontra em contínua mudança. Enquanto se está no mundo tudo se transforma, até na morte, pois o corpo se modifica, decompondo-se. Barnabé é o sujeito fadado a essa condição imposta de movimento, sendo essa uma das idéias que fundamentou a visão de mundo do homem barroco:

Toda uma série de conceitos, implicados em diferentes aspectos da cultura barroca, vincula-se a este papel do movimento como princípio fundamental do mundo e dos homens: as noções de mudança, alteração, variedade, ou de caducidade, restauração, transformação ou de tempo, circunstância, ocasião etc são derivação dele (MARAVALL, 1997, p. 284).

O judeu irá tanto viver esse mundo em movimento, quanto ser a sua própria representação, pois no romance nos deparamos com desde as transformações mais comuns a todo ser humano, como as físicas, até as totalmente individuais, como as espirituais. Destaca-se a seguir duas passagens do romance que ilustram ambas transformações respectivamente:

Uma nova paisagem descortina dentro de si, e quanto mais para ela se debruça, mais ela se descerra num abismo. Presencia as metamorfoses do corpo, intuindo que uma coisa e outra andam em uníssono, e com crescente freqüência afoita-se a substituir o toque da flauta pela manipulação do órgão que mais sensível se lhe tornou, mais dotado de uma exigância de maravilhas (CLÁUDIO, p. 48).

E bichanavam os mareantes acerca do que teria sido que sucedera ao rapaz (...) Observavam-lhes as maneiras admirando-se de que o mesmo não continuasse ele, antes de se houvesse mudado num poço de silêncio que um sorriso brandíssimo guardava por doces palavras replicando à interpelação com que vinham abordar (CLÁUDIO, p. 243).

Na primeira citação percebemos a “metamorfose” tanto do interior quanto do exterior do menino, ou seja, o amadurecimento do corpo e da mente, esse último está mais explícito no seguinte exemplo: “O subterrâneo medo o surpreende, da extinção do sonho e da volatilidade dos fascínios, da ineficácia dos ofícios e da prudência da morte”. Neste trecho o personagem se dá conta de que a vida nem sempre corresponderá às suas expectativas, e sendo ele impotente quanto a isso, terá que aprender a aceitar e seguir em frente. Voltando a segunda citação acima (p. 243), notamos a mudança de Barnabé a partir do estranhamento de seus companheiros marujos sobre o seu comportamento e a sua aparência serena.

Encontramos, portanto, nesse romance contemporâneo de Mário Cláudio, a mesma compreensão de mundo de que fala Maravall sobre o Barroco do século XVII: “o Barroco possui uma consciência muito aguda da multiplicidade e variabilidade das manifestações do humano” (MARAVALL, p. 289). Barnabé é o homem “transeunte entre os modos do real; ‘peregrino do ser’, chama-o Gracian. É mutante e movediço” (MARAVALL, p. 289).

II.I. A peregrinação pelas vias marginalizadas

Ele não tem lugar, é um deslocado. Uma “displaced person”, como se diz na literatura de língua inglesa, um “excluído”, conforme a retórica social de nossos dias. Exerce todas as profissões e não tem nenhuma. É sempre um “desdichado”, uma peça solta dentro da engrenagem social e econômica. (SANT’ANA, p. 68).

Barnabé se liberta de seus primeiros demônios, título do segundo capítulo “Os demônios”, quando deixa a sua aldeia e vai viver com o primo Joseph no Lamego. Longe de Ucanha, ele também se distancia de sua primeira experiência com a morte e vê abrirem dentro de si novas expectativas: a do trabalho e a do amor.

Revocata é a filha bastarda de primo Joseph pela qual o judeu se apaixona, sendo igualmente correspondido:

E botava-se a congeminar o adolescente em que temas se abismaria ela, ignorante de que lhe seguia Revocata com não menor atenção os íntimos movimentos denunciados pelo imperioso pigarro com que presumia ele a firmeza da masculinidade (CLÁUDIO, p. 69).

O amor genuíno que se concretiza entre eles liberta temporariamente o jovem Barnabé de todos os demônios da infância e de Ucanha, possibilitando a reconstrução do seu interior para novos sentimentos de completude e paz:

iria barnabé na amizade de si mesmo, não se passando jornada sem que com Revocata partilhasse a completude que adquirira (...) Para as entranhas dos Infernos pareciam haver revertido os loucos demônios de Ucanha, e florescia o gaiato na luz angelical como se viesse na gozação de um salmo que tivesse desprendido o rei David das cordas da sua cítara (CLÁUDIO, p. 70 e 71).

O amor, todavia, que liberta Barnabé de seus demônios, será o mesmo que o principiará nas vias marginais. A conseqüência desse amor custará caro aos amantes. Revocata engravida, o que traz grande ressentimento ao primo Joseph que, por sua vez expulsa o de Ucanha de sua casa e o manda para Lisboa: “Larga para Lisboa, filhote de Baal, larga para a Babilónia, que talvez te designe Eloim, nosso pai, o astrozinho que te guie pelo sendeiro da salvação” (CLÁUDIO, p. 71).

O equilíbrio alcançado através do amor por Revocata e pelo afeto do primo Joseph chega a ser cruel de tão efêmero. A harmonia no espírito de Barnabé não se estende por mais de duas páginas do romance e uns poucos meses da vida do judeu. O homem, protegido na segurança do lar e do trabalho oferecido pelo primo, e aconchegado nos braços da mulher que ama, se depara sozinho novamente. A completude se transforma em desolação, levando o personagem mais uma vez à estrada de si mesmo e da vida. A essa altura do romance, podemos ver claramente o que falou Maravall sobre o Barroco:

Se, para o Barroco, o movimento é o princípio fundamental de sua cosmovisão, compreende-se que não pretenda apresentar a obra de um organismo perfeito, de um corpo arquitetônico, de um tratado sistemático, mas – como observou Woffin – a impressão de um acontecer, de um drama, a agitação do devir, captando uma realidade sempre em trânsito” (MARAVALL, p. 286).

No mesmo trecho em que se descreve a completude de Barnabé, encontramos, por outro lado, a adversativa para “recordar” ao leitor que a vida exige o movimento e, por isso, não poderia o judeu apaixonado se manter por demasiado tempo em “repouso”: “o equilíbrio é um resultado sempre em jogo, e, com freqüência, ameaçado” (MARAVALL, p. 286).

Em Lisboa, o personagem peregrinará pelas ramificações mais profundas e escuras da sociedade, pelas vias mais sujas e confusas da capital. O seu teto será o céu e a sua cama serão as pedras do cais[7]. Envolvido pelo cenário extremamente barroco, caracterizado pela aglomeração de pessoas, pela mistura de classes sociais pelas ruelas de Lisboa, como pela soma de diferentes cheiros e uma grande interpenetração de conversas[8], Barnabé desempenhará os mais variados papéis: “havia sido eu cabouqueiro, e moço de taberna, pedinte e ajudante de calafate, criado de um boticário, e surrador, coveiro dos mortinhos da Misericórdia, e por cinco anos penara numa enxovia” (CLÁUDIO, p. 76).

Barnabé se perde nos mais escuros corredores da vida, é o que adverte, segundo Maravall, Comenius: “Comenius admoesta sobre o risco de perder-se no ‘ labirinto do mundo, sobretudo como está organizado no presente” (MARAVALL, p. 253). A desarmonia e o desequilíbrio de Barnabé são marcados pelo seu vício, mas sobretudo palas feridas em seu corpo. O capítulo que segue “Os demônios”, no qual o personagem é expulso da casa de seu primo Joseph, se concentrará nas feridas dolorosas que se dão no interior, mas que se expõem também no exterior, no corpo de Barnabé: são as chagas, que também intitulam o capítulo “As chagas”. Temos aí uma correlação entre corpo e alma, que como diz o próprio autor em entrevista: “É nessa conflituidade carne-espírito que se joga o destino humano” (Informação verbal)[9]. A “alma” de Barnabé decaiu e seu corpo junto com ela ganha marcas e cicatrizes. Alma e corpo viciados na fornicação com a prostituta cuja alcunha é “Cono de Ferro”: “volvera-se Barnabé incondicional escravo da voragem da rameira, disposto a tudo sacrificar, e a tudo se desfazer, conquanto lhe fosse autorizado o renovo das delícias da beatitude primordial” (CLÁUDIO, p. 81).

O personagem, como se pode notar, deixa o pedestal e se entranha na imundice. Percorre pelo mais refinado e humano sentimento, o amor, até o mais vulgar, o “instinto”[10], transformando-se num “animal” tomado pelas doenças venéreas: “À amargura que lhe causava a ausência da cabra[11] que não lhe saía do pensar associava Barnabé, aplicando purgas e enxugando corrimentos, o desprezo por si, e o ímpeto de aniquilar o que lhe haviam dito que fora arquitetado à imagem e presença de Deus, mas descambava numa carga de guilhetas, materializando uma implicável condenação” (CLÁUDIO, p. 82).

Mais uma vez, agora encurralado pelo seu estado miserável, Barnabé é obrigado a se movimentar para o caminho contrário ao que estava seguindo: “Em absoluto desespero foi procurar o seu velho Joseph, mais acendido pela necessidade de apear um fardo de angústia do que iluminado pela esperança de obter um refrigério qualquer” (CLÁUDIO, p. 82 e 83). Reage o judeu em busca de salvação e é ao primo Joseph que procura, desse recebendo apaziguamento do corpo e do espírito. Joseph profetiza sobre a vida de seu primo ajudando-o a sair do seu estado humilhante ao comparar as suas más escolhas às do grande personagem bíblico Salomão, e para as chagas do corpo, receita-lhe um remédio:

E mostra-se o vício contrário à felicidade, e o excesso inimigo do equilíbrio, mas não desfaleças no intento de trilhar o caminho recto, já que é da juventude a imprevidência e a frivolidade, e nem Salomão escapou a essas chagas, e quanto ao que te dilacera de dor as partes vergonhosas, e que te servirá de acrescida sabedoria, decora esta receita (CLÁUDIO, p. 83).

Esse primeiro passo de Barnabé para deixar o “baixo mundo” social e para abandonar seus vícios será prosseguido pelo despertar do interesse pela navegação. O desejo de marear é o meio naturalmente encontrado para se desprender dessa fase lastimável de sua vida, mas também essencial para o autoconhecimento do sujeito.

II.II. O caminho para a transcendência: Barnabé junta-se aos “loucos”

E ignorando por que motivo recôndito, reputava de vagamente criminosa a investida que teimavam em realizar pelo Atlântico, intrusos num universo de que o Omnipresente com rigor os separara, apenas Noé concedendo, e por causas extraordinárias, o direito de sobre as águas flutuar (...) sofrera Barnabé o incômodo da pequenez do ser a quem não foram concedidas barbatanas, nem asas (CLÁUDIO, p. 153).

O mundo ao redor de Barnabé se transforma radicalmente mais uma vez. A mudança de rumo do personagem o leva a um novo espaço, que se por um lado possui regras a serem seguidas, como a hierárquica, por outro lado apresenta maior instabilidade. Nesse novo espaço, não terá o judeu a firmeza da terra sob seus pés, nem a liberdade de ir fisicamente aonde desejar. A insegurança adentra ainda mais o seu interior perante o mundo desconhecido, em que a natureza muda inesperadamente e as tarefas se confundem a cada onda monstruosa ou vento destruidor que atingem as naus. A figura do capitão Vasco da Gama, que deveria incutir nos marujos alguma segurança, se desfaz a cada ameaça de tempestade, assim como ao som da temida palavra pronunciada: “hidra, hidra, hidra, hidra, hidra, hidra” (CLÁUDIO, p. 136).

A teoria da transformação e do movimento contínuos, estudada no tópico anterior, surge nessa nova etapa do romance representada concretamente no espaço a que agora pertence Barnabé: a nau oscila, os ventos mudam de direção, os minutos próximos são imprevisíveis. Barnabé segue peregrinando numa nova direção que, desde o princípio, o começa modificar: “uma subterrânea metamorfose fora nele trabalhando, a irmaná-lo com os peixes do vasto oceano, o que parece constituir fenômeno nem por isso inabitual na carreira dos mareantes de todo o tempo e todo o lugar” (CLÁUDIO, p. 150). O judeu passa a constituir o grupo dos homens loucos, caracterizados pelo anseio de conquistar o desconhecido, de explorar a si mesmo, colocando-se em situações limites como a morte certa. É sobre essa atmosfera de loucura, denotada nesta obra de Mário Cláudio, que fala Maravall ter qualificado as obras barrocas do séc. XVII: “desde que começaram as mudanças suscitadas pela modernidade, houve quem chegasse a pensar que o mundo e os homens estavam atacados de grande loucura” (MARAVALL, p. 248).

Vemos angustiados, o judeu ser dominado pela culpa da empreitada a que se submeteu ao mesmo tempo, paradoxalmente, em que se vê incentivado, por “seres divinos”, a terminá-la. Barnabé é o marujo que desvenda o caminho para as “Índias”, mas não apenas isso, é o marujo “de todo o tempo e de todo o lugar”, como foi citado na epígrafe, ou seja, é a representação do próprio homem que se aventura a enfrentar a eterna busca pelo sentido da vida.

Uma das questões importantes para o encontro de Barnabé consigo mesmo é a religiosidade: obrigado a se converter à religião cristã, devido ao imperialismo de D. Manuel, o personagem encontra no próprio convívio com os cristãos motivos para se firmar ainda mais na sua verdadeira fé, a judaica: “E não se apertava o bucho do moço no medo de que lhe inferissem o judaísmo, porque terror mais vasto aprendera ele no semblante de Vasco da Gama, o que os tornava idênticos nesse plano (...) e afigurava-se a morte religião comum” (CLÁUDIO, p. 111). Outra problemática relevante e essencial, para que se desprendendo do que foi, ele possa renascer um novo homem, está na superação dos erros cometidos no passado e dos medos que o vêm dominando até o presente momento: “não lances o olhar para o que foi, Barnabé, porque desse modo se morre a cada dia da vida e não temas o que se situa adiante, já que haverá alguém de te acompanhar” (CLÁUDIO, p. 97).

Tendo chegado a essas conclusões, do homem peregrino a busca de si mesmo, podemos estabelecer uma relação entre Barnabé e o homem barroco do séc. XVII de que fala Maravall:

O homem (...) é um indivíduo em luta, com toda a comitiva de males que à luta acompanha, com os possíveis proveitos que também a dor traz consigo, mais ou menos ocultos. Em primeiro lugar, encontra-se o indivíduo em combate interno consigo mesmo, fonte de tantas inquietações (...) que do seu interior brotam e se projetam em suas relações com o mundo e com os demais homens. O homem é o ser agônico dentro de si (MARAVALL, p. 260).

O recomeço de Barnabé, que agora peregrina por corredores do labirinto que o levarão à transcendência e não ao obscuro, se caracterizará pela inexistência de fronteiras entre o mundo concreto e exterior e o mundo fantástico e interior. As experiências individuais de quase morte serão marcadas por “aparições” de seres superiores, divinos. Não será, por isso, todavia menos doloroso o percurso.

II. III. O homem “gracioso”[12]: a inexistência de fronteiras entre o real e o fantástico

É nessa conflitualidade carne-espírito que se joga o destino humano. (Informação verbal)[13]

Mário Cláudio constrói perfeitamente, em Peregrinação de Barnabé das Índias, o paradoxo que existe no conflito entre empirismo e fé religiosa. Havia no séc. XVII uma grande tensão entre esses dois pólos, como descreve Maravall, em A cultura Barroca, decorrente da Contra-reforma, que questionou e oprimiu a visão empírica e natural do mundo.

No romance trabalhado, essa tensão transparece em todo o momento, visto que é construído tendo como base para a sua narrativa a miscigenação entre real e fantástico. Há partes do romance em que não sabemos se o que está acontecendo é real ou fruto apenas da experiência interior de Barnabé, como no capítulo “Os Anjos”, no qual o judeu se vê enfeitiçado pela africana com quem tem uma relação sexual pura e elevada, tão perfeita e harmoniosa que nos faz questionar se não seria a mulher um ser de outro mundo, divino. O que podemos dizer, sem equívocos, é que a história de Barnabé das Índias é uma grande alegoria sobre a condição humana da experiência:

A atenção à condição do próprio ser humano, que tanto espaço ocupa na mentalidade barroca traduz-se em uma preocupação com o curso da experiência, por meio da qual não se chegará a possuir a estrutura de um saber universal, mas que em última instância – tal é o caso das leis físicas – pode ser um saber universalizável, e que sempre poderá ser válido para organizar a conduta da vida. A arte barroca nos oferece o resultado de uma observação singularizadora do ser humano (MARAVALL, p. 282).

Será a primeira e inesquecível experiência de quase morte de Barnabé uma espécie de primeiro passo rumo à transcendência. A nau São Rafael é atingida por uma forte tempestade, ameaçando o fracasso da grande empreitada lusitana:

Tomaram-se os homens de extraordinário susto, suspeitosos de que significasse aquela alteração da comum engrenagem dos elementos (...) artimanha dos demônios determinados a imperdir-lhes a difusão do evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo (CLÁUDIO, p. 170).

Barnabé é lançado ao mar junto das águas que invadiram a nau, ele afunda e emerge na vastidão do oceano por indefinidas vezes repetitivamente e sente que não conseguirá resistir. O caos em que se encontram ele e todos os aventureiros parece não ter fim, quando enfim a borrasca termina e então tudo se acalma. Nessa hora, mistura-se a experiência concreta de quase morte à outra fantástica, em que Barnabé vê falar o anjo São Rafael, o mesmo esculpido na proa da nau que carrega o seu nome:

Terminada a imprecação a Iahvé, colhera-o da vertigem de sombras um anjo perfeitíssimo, e atento na face que defronte se lhe postava, entendera o rapaz que não era senão o da figura de proa, representativa do glorioso advogado da sua barca. E sustentando-o num abraço vestido de túnica escarlate, e beijando-o nos beiços de moribundo que já se julgava, nestes termos falou a tranqüilizadora aparição “nada temas, irmão e amigo, pois que venceste agora mesmo a inicial das provações com que deseja o Altíssimo experimentar-te” (CLÁUDIO, p. 173).

A miscigenação entre o palpável da morte e o fantástico se dá de forma natural na narrativa, como se ambos se completassem. Mostra-se, que no ser humano, ainda mais no homem barroco em que a tensão entre os dois pólos é bastante visível, esses dois pólos se encontram sem que a história pareça inverossímil, visto que a narrativa é construída sem limitações entre concreto e não concreto. Mesmo com o narrador em terceira pessoa, não podemos julgar verdadeira ou não, isso em termos empíricos, visto que obviamente foi verdadeira para o personagem em si, a experiência sobrenatural de Barnabé, pois o enredo em nenhum momento se fecha, ou impõe uma forma de leitura ao leitor, mas pelo contrário, forma o que tanto caracteriza as narrativas barrocas de que fala Sant’ana: uma elipse. A troca de narradores, o discurso indireto livre, o estilo próprio de pontuação, a mudança de foco a cada parágrafo não permite esse fechamento, mas deixa o texto aberto para possíveis interpretações, ou melhor, descobertas no percurso como leitor. Isso porque, como citou Maravall, T. Browne: “The world that I regard is my self”[14]. Barnabé é religioso e, portanto, nada mais natural que suas experiências estejam diretamente relacionadas a eventos divinos.

O que importa, todavia, não é a veracidade ou não da experiência fantástica, mas sim a presença desse questionamento da experiência individual que, dentre muitos outros fatores já mencionados, faz do romance de Mário Cláudio barroco.

A sobrevivência à tempestade, alegoricamente interpretada, foi, como disse o anjo, “o inicia das provações”, ou seja, o primeiro e principal obstáculo na vida do homem: o enfrentamento da morte. Obstáculo esse, que independe da condição social ou de instrução de cada um, como fica claro na argüição de São Rafael: “e afirmo-te eu que alguns que superiores te são na ciência e na autoridade, e que nesta viagem se comprometeram, não mais imunes se manifestam ao temor que corrói as entranhas” (CLÁUDIO, p. 173). Tal conclusão nos aponta mais uma vez Vasco da Gama, que também alegoricamente, não enfrenta o medo, a “hidra”, e por isso não descobre as suas “Índias”, como irá admitir mais tarde a Barnabé: “Deus te abençõe, meu rapaz, que foste tu, e mais ninguém, quem essas Índias na verdade descobriu” (CLÁUDIO, p. 278).

A ascensão de Barnabé confunde-se à loucura e vemos no mesmo o homem “gracioso”[15]: “E consentiam em que descuidasse Barnabé as suas tarefas, e sorriam-lhe com a tolerância inconsciente com que enfrentam os comuns, quando não compelidos por essenciais conjunturas de sobrevivência, a suave doideira que se apodera dos santos” (CLÁUDIO, p. 177).

A “loucura” se agrava conforme avança o personagem no seu percurso, passando por novas experiências. O encontro entre ele e a moçambicana é marcado pela descrição mágica e misteriosa[16]. Ao contrário da prostituta que lhe trouxe as chagas, a africana o eleva em corpo e alma, e ficamos na dúvida sobre a mulher que manteve com ele relações sexuais: seria um anjo?

É, porém, a terceira experiência com o divino definitiva para que o judeu alcance a transcendência. Salvo de uma segunda tempestade, que lhe derruba sobre o peito “o pau com as velas rasgadas” (CLÁUDIO, p. 198), o anjo o leva para conhecer o Universo e os demais mistérios da vida, desvendo principalmente o mistério que de todo homem tira o sono: a morte:

“agora te visito, Barnabé, para que compreendas, e te despojes das algemas que te ferem os pulsos, e se te desvende o que para além das dunas do medo se situa, e atravessaste a morte de novo, e te alimpaste das chagas que te atormentavam, porque está morto o que vive, e vivo o que morre, e transpuseste as fronteiras que submetem as criaturas (...) e às Índias verdadeiras apostaste, pois que sempre se alojaram elas nos ocultos de ti” (CLÁUDIO, p. 200).

Interessante é a declaração em entrevista de Mário Cláudio a respeito do que pensa sobre a morte, e que podemos aproveitar neste trabalho para enriquecer ainda mais a nossa conclusão sobre a descoberta de Barnabé: “e nessa viagem descobre, através da travessia do medo, se quisermos, que a Morte não existe, que apenas um fenômeno tão natura como o nascimento. Descobre que a mesma dever-se-ia opor ao nascimento e não à vida” (Informação verbal)[17].

III. Considerações finais: o descobridor das Índias

Peregrinação de Barnabé das Índias é um convite às viagens do ser humano pelo seu grande universo interior, ao mesmo tempo em que reconstrói de forma extremamente crítica e irônica a história da expansão marítima portuguesa.

O romance em si já é uma grande alegoria: acompanhamos o homem peregrinar pela vida em busca da paz do corpo e do espírito. O corpo desse homem, como todos os demais corpos do mundo, se transformará em ruína, disso não há escapatória. Todavia, a ruína não precisa ter um fim em si mesma, como acontece a Vasco da Gama, que não encontra as suas Índias, porque não enfrenta a si e a seus medos; pelo contrário, aprisiona-o dentro do quadro que decora a sua sala, e confessa, apesar de querer manter aos seus semelhantes a falsa superação de seus temores, nada ter descoberto nas suas viagens:

E perguntando-me alguém que oceanos atravessei, e a que enseadas terei aportado, resposta nenhuma me colhe, vinda dos fundos de um sono de chumbo, porquanto sonho, e em nada mais, singraram as armadas em que me meti (CLÁUDIO, p. 233).

Barnabé, o simples judeu de Ucanha, o homem excluído da sociedade, que não carrega títulos, chega também à ruína física da velhice, mas não à interior, porque encontrou as respostas para as suas perguntas, não existindo mais para ele o mistério que a todos os homens atemoriza: “e que te importa a morte em que se enredam os que em torno de ti adormeceram, se o que nela se contém nenhum mistério implica” (CLÁUDIO, p. 242). Até representada, mesmo que através de extremada ironia, foi a sua ascensão no mundo concreto, visto que tem Joseph a sua profecia, de que ocuparia seu primo o acento de São Pedro, realizada, porque Barnabé serve ao pintor Gaspar Vaz de modelo para a sua pintura do santo: “tudo conforme à profecia do seu primo Joseph, o qual lhe prognosticara que no sólio do Vigário, e com invulgar solenidade, pelos séculos dos séculos haveria ele de assentar” (CLÁUDIO, p. 274).

Tudo isso nos revela a grande alegoria que é a obra de Mário Cláudio, repleta de outras alegorias menores, como a hidra, de Vasco da Gama, a nau São Rafael, o rio descrito por André Mendes, os mares, as tempestades, dentre muitas outras. Walter Benjamin discute as variadas funções e origens da alegoria relacionando-a ao contexto barroco, principalmente quando o tema é a morte. Abarca a alegoria as características ambíguas que denotamos no curso deste trabalho: “Mas a ambigüidade, a multiplicidade dos sentidos é o traço fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações. Mas essa ambigüidade é a riqueza do desperdício” (BENJAMIN, 1984, p. 199).

Acompanhamos toda a metamorfose a que Barnabé foi submetido, e a que são submetidos todos os homens no decorrer da vida, podendo ter sucesso, como teve o personagem judeu, ou não, tal foi o caso do comandante da São Rafael. Vimos, baseados na teoria do movimento e da transformação ilustrada, que está o ser humano consignado a se mover, sendo-lhe inadmissível o descanso, o repouso. A vida, o grande labirinto do qual só existe a temida e única saída, condena o homem a agir, para esse não restando alternativa de senão fugir dos seus medos, aprisionando-os dentro de si, para que não saiam e dessa forma não se depare com os mesmos; ou permitir o encontro consigo mesmo e com seus temores, encontrando, assim a paz e a redenção: “nem de salteadores, nem de fantasmas, me temo, vencido o medo destas cousas pelo medo que experimentei” (CLÁUDIO, p. 237).

O romance, graças às entrelinhas, ironias, fragmentação, ritmo próprio da viagem, forma elíptica, alegorias, ausência de fronteiras ou limites entre as dimensões empíricas e fantásticas, nos permite uma leitura profunda, detalhista e instigante do homem, ser em eterna busca, em eterno conflito consigo mesmo, além de se revelar essencialmente barroco: “a grande empresa não é a que se faz caminhando por fora, mas a que se faz caminhando por dentro. A tese do livro é fundamentalmente essa” (informação verbal)[18].

Notas:

[1] “Muitos são, portanto, as viagens que o romance tece. Uma é aquela em que a superação das adversidades leva à glória, às benesses. O romance surpreende Vasco da Gama, na velhice, contabilizando os lucros que obtivera, porquanto é o sujeito dessa viagem em busca da fama cujo nome verdadeiro é a vã cobiça, como já sabia o Velho do Restelo. Viagem em que é uma geografia por usurpar. Outra viagem que se faz pelos subterrâneos do ser, pela superação espiritual das misérias do corpo e da alma, viagem interior das sombras à luz, em que não se honrarias, mas conhecimentos” (ALVES, 1999, p. 1).

[2] CLÁUDIO, p. 63.

[3] Comunicação feita por Mário Cláudio em 18 de junho de 1998 no PÚBLICO, Lisboa.

[4] Ibdem.

[5]Gracián apud. MARAVALL. José António. A cultura do barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. p. 289.

[6] Grifo meu.

[7] “as pedras do cais por leito, e os astros por tecto” (CLÁUDIO, p. 76).

[8] “E não será de surpreender que, criado na habituação dos remansos de Ucanha que a estada em Lamego não bastara para anular, me atordoasse com a balbúrdia de gentes disparatadas, enxameando as ruas por onde constituía assinalável proeza fazer progredir a fileira dos escudeiros e dos criados (...)expunham as pescadeiras a safra da noite anterior, reclamavam as fruteiras as primícias da cereja, apuravam as frigideiras a gostosura dos salmonetes, das azevias e das solhas...” (CLÁUDIO, p. 72 e 73).

[9] Ibdem, p. 5.

[10] palavra usada pelo próprio autor: “com a vista a ceder às graças da imperatriz de seus instintos” (CLÁUDIO, p.82).

[11] Grifo meu: a palavra “cabra” está em negrito para destacar a condição de animal de ambos personagens, Barnabé e a prostituta.

[12] MARAVALL, José Antonio. p. 150.

[13] Comunicação de Mário Cláudio ao Expresso em 06 de julho de 1998 às 18hrs e 16min.

[14] MARAVALL, p. 283.

[15] Ibdem, p. 14.

[16]p. 182 e 183.

[17] Ibdem, p. 3.

[18] Ibdem, p. 14.


IV. Referências Bibliográficas.

ALVES. Maria Theresa Abelha. A peregrinação iniciática de Barnabé das Índias. In___: Anais do 6º Congresso da AIL (Associação Internacional de Lusitanistas). Rio de Janeiro: UFRJ, 1999 __ Cd ROM.

BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

_________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.

CLÁUDIO, Mário. Peregrinação de Barnabé das Índias. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998.

FRANCO. Luísa Mellid-. A oculta viagem de Vasco da Gama. Portugal: Expresso, 1998. Entrevista. Disponível em: . Acesso em: 10 maio de 2002.

MARAVAL. José Antonio. A cultura do barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

QUEIROZ. Luís Miguel. À descoberta de duas Índias. Portugal: Público, 1998. Entrevista. Disponível em . Acesso em: 10 maio 2002.






Marcela Teixeira Barbosa