segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Moinho




Esperava achá-lo feio como na primeira vez em que o viu, mas ele estava de costas e grande foi a decepção por notá-lo ainda mais bonito. Cruzou rapidamente o pátio da escola, porque sabia que ele daria aula às nove, e ficou aguardando do lado de fora do prédio pela sua passagem. Em câmera lenta, mas fugaz, com um embrulho na mão, os cabelos amarrados, os olhos azuis a mirarem-na por um único instante, que não se agarra com as mãos, mas com o coração... triste, visto que já se desviou sem notar os olhos que o acompanharam fixamente.
O ir para a escola se tornou outro: nunca mais se esteve na sala de aula. A vida era agora esperar, como uma grávida, esperava por ele, esperava-o, dentro de si, mesmo estando ele fora.
E como explicar que o amor existe no mundo de carne e carne dos adolescentes? E como mostrar aos demais que não se tratava daquilo, mas de um querer doído e bom que não acaba nem quando ela não mais o pode ver, com os olhos? O amor era tão forte, tão intenso que precisava se livrar dele, senão morreria, ah! morreria... morreria com gosto, agonizando eternamente... como morriam as donzelas de Shakespeare.
E para não morrer escreveu, escreveu, escreveu, deitando nos papéis o seu amor escondido e covarde, porque os papéis não tinham que entender nada, porém a julgariam mais tarde pela falta de atitude. Mas que atitude se pode ter quando se é apenas uma adoscescente perante um homem? São mil tabus e um milhão de preconceitos contra o grande, enorme, imensurável amor de uma adolescente, visto como uma paixonite da idade.
Esperava não sentir mais aquele saudosismo do que não foi quando ele passou... mas sentiu... inevitável. Mais um ser humano derrotado pelo amor. Uma adolescente derrotada, sentiu.


Marcela Teixeira Barbosa

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O peregrino do ser em "Peregrinação de Barnabé das Índias", um romance de Mário Cláudio

Profeta Amós, Gustave Doré



I. Introdução

Peregrinação de Barnabé das Índias é o romance do escritor contemporâneo português Mário Cláudio, nascido em 1941, na cidade do Porto, e o objeto,deste trabalho que conta a história de dois instigantes personagens: Vasco da Gama, obviamente uma reconstrução do grande herói lusitano dos séculos XV e XVI, capitão da armada que desvendou o caminho marítimo para as Índias; e Barnabé, esse totalmente fictício, judeu nascido em Ucanha e marujo da nau São Rafael.

A partir dessas informações e do título do livro, podemos deduzir que o enredo se desenvolve tendo como foco principal a “peregrinação” - a vida - do homem, que, na obra analisada, caracteriza-se, dentre muitas outras coisas, por encontrar-se à margem da sociedade.

Barnabé aparece pela primeira vez aos olhos do leitor vestindo andrajos e já bastante idoso. Ele surge como um pedinte à porta da casa de seu antigo comandante Vasco da Gama, que, além de velho, encontra-se com problemas de saúde. O encontro entre os dois é o ponto de partida para o desenrolar dos próximos capítulos, que são construídos já em outro tempo e outros espaços. As Neves, primeiro capítulo do romance, apresenta os respectivos personagens e introduz a história pelo fim que está próximo: a morte. A essa altura ambos já percorreram um longo percurso.

Caracterizada pela fragmentação, a narrativa não se limita à fronteiras fixas entre tempo e espaço, logo o leitor se verá circulando entre o presente e o passado dos personagens, como acontece em As Neves, em que somos transportados da velhice de Vasco da Gama para a sua infância. No decorrer da história, todavia, o tempo tende a se estabilizar no passado ao encontro dos personagens, e a seguir a trajetória de ambos até que se chegue novamente à velhice dos dois.

Outro elemento significativamente relevante na composição da história, e que continua a variar, é o foco narrativo, ora em primeira pessoa, Barnabé, ora em terceira. Esses se intercalam grande parte do enredo, possibilitando aos leitores realizar a sua própria “peregrinação” pela história escrita por Mário Cláudio, visto que podem ocupar diferentes posições: acompanhando o narrador onisciente estamos ora como que à espreita, distanciados o suficiente para conhecermos os afazeres e o exterior dos personagens, ora próximos em demasia, espionando o que se passa dentro dos mesmos, os seus mais profundos sentimentos, sejam esses nobres ou constrangedores. Ao lermos, porém, o narrador-personagem, temos uma interpretação que se tece do interior para o exterior, e não o contrário, ou seja, tudo parte da visão do personagem sobre o que ele vive e presencia. Isso significa que conhecemos os fatos a partir de suas crenças, suas emoções, suas convicções sobre o mundo que o cerca, o que quer dizer que estamos ainda mais próximos do mesmo e de suas experiências. Sentimos maior proximidade com o mesmo: ele se revela diretamente para nós.

A troca de narradores, comum nas obras de Mário Cláudio, é um importante fator para que as situações vividas pelos personagens, assim como eles próprios, sejam mais explorados, já que permite a movimentação, ou pelo menos dá essa impressão, do leitor pelo que é narrado por diferentes ângulos. Tal recurso auxilia a elevação da reconstrução da experiência humana ao máximo, o que, segundo Walter Benjamim, deve ocorrer na forma romance: “Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza o romance anuncia a profunda perplexidade de quem o vive” (BENJAMIM, 1985. p. 201).

Podemos, portanto, dizer que em Peregrinação de Barnabé das Índias o leitor embarca nas “viagens”[1] junto aos personagens, percorrendo pelos mais densos questionamentos inerentes ao homem: o sentido da vida e a origem e superação, ou não, de seus medos.

O início da passagem de qualquer ser humano pela vida começa obviamente na infância, a partir do momento em que nos conscientizamos de nossa existência. Nem Vasco da Gama tampouco Barnabé das Índias tiveram um começo marcado pela segurança e estabilidade entre as relações afetivas. Aquele é separado muito cedo de seu pai, Estevão, por ser considerado traidor do reino. O futuro capitão da São Rafael presencia não apenas a humilhação tanto física quanto moral daquele que lhe pôs no mundo, como também o desespero de seu irmão Paulo da Gama após à morte de seu pai, manifestado pelo estranho comportamento de sempre atravessar a nado a Praia Nova, levando a sociedade a vê-lo como louco:

Mas quando vieram buscar Estevão, seu pai, foi como se um búzio se tivesse estilhaçado, e o eco do mar se calasse para sempre. (...) E por uma fresta da porta viu passar o autor de seus dias, escoltado por dois gigantes que à compita lhe arrepelavam os cabelos, e o insultavam de judeu, de bonitrate e traidor. (...) Doía-se do afastamento do irmão (...) que afirmavam ter endoidecido e viver numa cisma de morte e redenção, a grandes braçadas nadando contra redemoinhos funestos da Praia Nova (CLÁUDIO, 1998, pgs. 26, 27 e 28).

Não busca este trabalho justificativas, através das experiências da infância, para o medo e a insegurança que se apossarão de Vasco da Gama por toda a vida, mas nos interessa apontá-los como características próprias não só desse personagem, mas do homem, cabendo a cada um ou superá-las e ascender como criaturas, ou tornar-se prisioneiro delas, como acontece com aquele: “Mas assola-lhe um caos a inteireza da envergadura, e torcem-ce-lhe os intestinos, num espasmo sem saída, e defluem as correntezas da transpiração a perlar-lhe as barbas sem cãs de cavaleiro de vinte e nove anos” (CLÁUDIO, p. 26).

É no seu irmão Paulo da Gama que deposita o comandante a sua auto-confiança:

Um pacto secreto parecia unificar dois deles, patenteando-se ao menos sensível que se não cada um sem a sombra fraternal. (...) A passos longuíssimos marchava como se não bastantemente seguro das suas obrigações, e após a frase dirigida a um capataz buscava os olhos do irmão Paulo que a curta distância o ia seguindo (CLÁUDIO, p. 100).

O clima de insegurança será, conseqüentemente, agravado, “Pouco a pouco compreendera que andava o pânico que o transtornava a contaminar a população” (CLÁUDIO, p. 39). Além disso, o percurso para a Índia será marcado pelo ambiente confuso e cheio de hostilidades na relação tanto hierárquica, em que os marujos são tratados com desprezo e alcunhados pelos superiores, quanto entre os próprios marujos:

e se nos pregavam pontapé, o que a todo instante se sucedia, porfiávamos por permanecer mudos, e de ligeiro semblante, e apenas falta que nos impusessem que agradecêssemos as velhacarias com quem descaso nos tratavam (CLÁUDIO, p. 128)

À altura do trecho acima citado, Barnabé, que nesse momento narra a história, já se encontra como marujo, embarcado na nau São Rafael, onde se está também Vasco da Gama como se sabe, todavia diversos foram os tipos de “trabalhos” realizados pelo judeu.

Também é cedo que Barnabé se depara com a morte: seu amigo André Medes morre afogado durante uma algazarra, coisa rotineira entre os amigos, no rio Varosa. Chocado com o a fatalidade, o menino de Ucanha sofre grande turbulência interior, manifestada pelos seus pesadelos e seu comportamento, o que o leva a ser até mesmo exorcizado[2].

A partir daí, longa será a peregrinação do judeu, que passará tanto por diferentes lugares concretos (de Ucanha para Lamego, de Lamego para Lisboa e dessa para os mares), quanto por diferentes níveis de experiência como sujeito fazedor de sua história, o que é de maior interesse para este trabalho. Em outras palavras, pretende-se, através deste, peregrinar junto a Barnabé das Índias, sem deixar, contudo, de analisar Vasco da Gama, traçando um paralelo entre os dois, pelas suas reflexões e transformações interiores ao longo dessa extensa e fugaz viagem que é a vida.

Antes de prosseguirmos não poderíamos de deixar de dizer que ler Peregrinação de Barnabé das Índias é também uma superação em termos de dificuldade de leitura para o leitor, sendo a narrativa bastante densa, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto aos recursos textuais.

A linguagem utilizada pelo autor causa estranhamento, pois como os períodos são muito longos, com muitos hipérbatos e a pontuação não se dá de maneira convencional, mas segue um determinado ritmo, o da memória, como diz o próprio autor em entrevista ao ser questionado sobre a sua forma de escrita no romance, “É a forma como a nossa memória funciona. A memória tem uma metodologia muito própria” (informação verbal)[3], o leitor pode se perder por qualquer distração. Além disso, a narrativa está repleta de apostos e referências, divagações e entrelinhas e claro arcaísmos como “futurar”, “por mor de”, “à puridade” dentre outros. Apesar de todos esses traços, não podemos dizer que a linguagem encontrada no romance é a busca de uma reprodução fiel à da época, quando foi, na verdade, como disse Mário Cláudio, uma busca a “uma atmosfera lingüística”, e mais à frente esclarece: “Pretendi oferecer um equivalente plástico, em termos lingüísticos, daquilo que seria a linguagem da época, mas sem abdicar dos termos dos nossos dias”[4].

II. “O peregrino do ser”[5]

Saberás tu, Barnabé, que não tem foz o nosso rio, e que se estreita, quando pensamos ter chegado ao sítio onde termina, e que forma outros cursos, e cada qual em outros vários se espalha, e será assim por infindável tempo até o Juízo Final (CLÁUDIO, 1998, p. 61).

A epígrafe acima constitui parte dos dizeres póstumos de André Mendes. O morto aparece em sonho a seu amigo Barnabé revelando-lhe, metaforicamente, o dilema universal do ser humano: a dicotomia vida e morte. Podemos, num primeiro momento, interpretar a fala de André como a descrição do processo que tanto angustia o homem, visto que é inevitável: o tempo. Independentemente da forma como é vivido, o fim será sempre a morte. O sonho também pode ser lido como uma mera representação da conscientização de Barnabé sobre a condição de ser no mundo. Com a fatalidade, o menino de Ucanha despertou para a vida e seus mistérios, para a sua finitude. Nada impede que o sonho seja entendido pelas duas maneiras concomitantemente, pois os recursos narrativos utilizados tecem um enredo que não impõe uma verdade ao leitor, mas o aponta inúmeros caminhos de interpretação, sendo a própria estrutura textual um labirinto para o mesmo:

O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1985, p. 203).

A escrita, assim como a dicotomia vida e morte, é labiríntica. Os parágrafos são longos e a linguagem, por vezes insólita e enigmática, precisa ser decifrada. Notamos já na forma romance da obra de Mário Cláudio estudada neste trabalho características relevantes da imagem barroca de labirinto sobre qual fala Romano Sant’ana:

O labirinto não existe apenas como desenho, como jogo, como enigma. Tem uma conotação existencial. Ele só existe porque outro personagem o percorre, que é esse peregrino, esse ser peripatético, que aparece perdido, vagando daqui para ali” (SANT’ANA, 2000, p, 66).

Em Peregrinação de Barnabé das Índias, Barnabé é o “homo viator”, construído por essa narrativa labiríntica, que percorrerá desde os mais largos aos mais estreitos corredores da vida junto ao leitor que o acompanhará. É Barnabé “A imagem do peregrino [que][6] está geminada a outras imagens barrocas que indicam movimento, trânsito, peripécia, instabilidade” ( SANT’ANA, 2000, p. 67). O personagem, assim como nós, se depara num mundo em que é condenado a agir, porque tudo que o cerca, inclusive ele próprio, se encontra em contínua mudança. Enquanto se está no mundo tudo se transforma, até na morte, pois o corpo se modifica, decompondo-se. Barnabé é o sujeito fadado a essa condição imposta de movimento, sendo essa uma das idéias que fundamentou a visão de mundo do homem barroco:

Toda uma série de conceitos, implicados em diferentes aspectos da cultura barroca, vincula-se a este papel do movimento como princípio fundamental do mundo e dos homens: as noções de mudança, alteração, variedade, ou de caducidade, restauração, transformação ou de tempo, circunstância, ocasião etc são derivação dele (MARAVALL, 1997, p. 284).

O judeu irá tanto viver esse mundo em movimento, quanto ser a sua própria representação, pois no romance nos deparamos com desde as transformações mais comuns a todo ser humano, como as físicas, até as totalmente individuais, como as espirituais. Destaca-se a seguir duas passagens do romance que ilustram ambas transformações respectivamente:

Uma nova paisagem descortina dentro de si, e quanto mais para ela se debruça, mais ela se descerra num abismo. Presencia as metamorfoses do corpo, intuindo que uma coisa e outra andam em uníssono, e com crescente freqüência afoita-se a substituir o toque da flauta pela manipulação do órgão que mais sensível se lhe tornou, mais dotado de uma exigância de maravilhas (CLÁUDIO, p. 48).

E bichanavam os mareantes acerca do que teria sido que sucedera ao rapaz (...) Observavam-lhes as maneiras admirando-se de que o mesmo não continuasse ele, antes de se houvesse mudado num poço de silêncio que um sorriso brandíssimo guardava por doces palavras replicando à interpelação com que vinham abordar (CLÁUDIO, p. 243).

Na primeira citação percebemos a “metamorfose” tanto do interior quanto do exterior do menino, ou seja, o amadurecimento do corpo e da mente, esse último está mais explícito no seguinte exemplo: “O subterrâneo medo o surpreende, da extinção do sonho e da volatilidade dos fascínios, da ineficácia dos ofícios e da prudência da morte”. Neste trecho o personagem se dá conta de que a vida nem sempre corresponderá às suas expectativas, e sendo ele impotente quanto a isso, terá que aprender a aceitar e seguir em frente. Voltando a segunda citação acima (p. 243), notamos a mudança de Barnabé a partir do estranhamento de seus companheiros marujos sobre o seu comportamento e a sua aparência serena.

Encontramos, portanto, nesse romance contemporâneo de Mário Cláudio, a mesma compreensão de mundo de que fala Maravall sobre o Barroco do século XVII: “o Barroco possui uma consciência muito aguda da multiplicidade e variabilidade das manifestações do humano” (MARAVALL, p. 289). Barnabé é o homem “transeunte entre os modos do real; ‘peregrino do ser’, chama-o Gracian. É mutante e movediço” (MARAVALL, p. 289).

II.I. A peregrinação pelas vias marginalizadas

Ele não tem lugar, é um deslocado. Uma “displaced person”, como se diz na literatura de língua inglesa, um “excluído”, conforme a retórica social de nossos dias. Exerce todas as profissões e não tem nenhuma. É sempre um “desdichado”, uma peça solta dentro da engrenagem social e econômica. (SANT’ANA, p. 68).

Barnabé se liberta de seus primeiros demônios, título do segundo capítulo “Os demônios”, quando deixa a sua aldeia e vai viver com o primo Joseph no Lamego. Longe de Ucanha, ele também se distancia de sua primeira experiência com a morte e vê abrirem dentro de si novas expectativas: a do trabalho e a do amor.

Revocata é a filha bastarda de primo Joseph pela qual o judeu se apaixona, sendo igualmente correspondido:

E botava-se a congeminar o adolescente em que temas se abismaria ela, ignorante de que lhe seguia Revocata com não menor atenção os íntimos movimentos denunciados pelo imperioso pigarro com que presumia ele a firmeza da masculinidade (CLÁUDIO, p. 69).

O amor genuíno que se concretiza entre eles liberta temporariamente o jovem Barnabé de todos os demônios da infância e de Ucanha, possibilitando a reconstrução do seu interior para novos sentimentos de completude e paz:

iria barnabé na amizade de si mesmo, não se passando jornada sem que com Revocata partilhasse a completude que adquirira (...) Para as entranhas dos Infernos pareciam haver revertido os loucos demônios de Ucanha, e florescia o gaiato na luz angelical como se viesse na gozação de um salmo que tivesse desprendido o rei David das cordas da sua cítara (CLÁUDIO, p. 70 e 71).

O amor, todavia, que liberta Barnabé de seus demônios, será o mesmo que o principiará nas vias marginais. A conseqüência desse amor custará caro aos amantes. Revocata engravida, o que traz grande ressentimento ao primo Joseph que, por sua vez expulsa o de Ucanha de sua casa e o manda para Lisboa: “Larga para Lisboa, filhote de Baal, larga para a Babilónia, que talvez te designe Eloim, nosso pai, o astrozinho que te guie pelo sendeiro da salvação” (CLÁUDIO, p. 71).

O equilíbrio alcançado através do amor por Revocata e pelo afeto do primo Joseph chega a ser cruel de tão efêmero. A harmonia no espírito de Barnabé não se estende por mais de duas páginas do romance e uns poucos meses da vida do judeu. O homem, protegido na segurança do lar e do trabalho oferecido pelo primo, e aconchegado nos braços da mulher que ama, se depara sozinho novamente. A completude se transforma em desolação, levando o personagem mais uma vez à estrada de si mesmo e da vida. A essa altura do romance, podemos ver claramente o que falou Maravall sobre o Barroco:

Se, para o Barroco, o movimento é o princípio fundamental de sua cosmovisão, compreende-se que não pretenda apresentar a obra de um organismo perfeito, de um corpo arquitetônico, de um tratado sistemático, mas – como observou Woffin – a impressão de um acontecer, de um drama, a agitação do devir, captando uma realidade sempre em trânsito” (MARAVALL, p. 286).

No mesmo trecho em que se descreve a completude de Barnabé, encontramos, por outro lado, a adversativa para “recordar” ao leitor que a vida exige o movimento e, por isso, não poderia o judeu apaixonado se manter por demasiado tempo em “repouso”: “o equilíbrio é um resultado sempre em jogo, e, com freqüência, ameaçado” (MARAVALL, p. 286).

Em Lisboa, o personagem peregrinará pelas ramificações mais profundas e escuras da sociedade, pelas vias mais sujas e confusas da capital. O seu teto será o céu e a sua cama serão as pedras do cais[7]. Envolvido pelo cenário extremamente barroco, caracterizado pela aglomeração de pessoas, pela mistura de classes sociais pelas ruelas de Lisboa, como pela soma de diferentes cheiros e uma grande interpenetração de conversas[8], Barnabé desempenhará os mais variados papéis: “havia sido eu cabouqueiro, e moço de taberna, pedinte e ajudante de calafate, criado de um boticário, e surrador, coveiro dos mortinhos da Misericórdia, e por cinco anos penara numa enxovia” (CLÁUDIO, p. 76).

Barnabé se perde nos mais escuros corredores da vida, é o que adverte, segundo Maravall, Comenius: “Comenius admoesta sobre o risco de perder-se no ‘ labirinto do mundo, sobretudo como está organizado no presente” (MARAVALL, p. 253). A desarmonia e o desequilíbrio de Barnabé são marcados pelo seu vício, mas sobretudo palas feridas em seu corpo. O capítulo que segue “Os demônios”, no qual o personagem é expulso da casa de seu primo Joseph, se concentrará nas feridas dolorosas que se dão no interior, mas que se expõem também no exterior, no corpo de Barnabé: são as chagas, que também intitulam o capítulo “As chagas”. Temos aí uma correlação entre corpo e alma, que como diz o próprio autor em entrevista: “É nessa conflituidade carne-espírito que se joga o destino humano” (Informação verbal)[9]. A “alma” de Barnabé decaiu e seu corpo junto com ela ganha marcas e cicatrizes. Alma e corpo viciados na fornicação com a prostituta cuja alcunha é “Cono de Ferro”: “volvera-se Barnabé incondicional escravo da voragem da rameira, disposto a tudo sacrificar, e a tudo se desfazer, conquanto lhe fosse autorizado o renovo das delícias da beatitude primordial” (CLÁUDIO, p. 81).

O personagem, como se pode notar, deixa o pedestal e se entranha na imundice. Percorre pelo mais refinado e humano sentimento, o amor, até o mais vulgar, o “instinto”[10], transformando-se num “animal” tomado pelas doenças venéreas: “À amargura que lhe causava a ausência da cabra[11] que não lhe saía do pensar associava Barnabé, aplicando purgas e enxugando corrimentos, o desprezo por si, e o ímpeto de aniquilar o que lhe haviam dito que fora arquitetado à imagem e presença de Deus, mas descambava numa carga de guilhetas, materializando uma implicável condenação” (CLÁUDIO, p. 82).

Mais uma vez, agora encurralado pelo seu estado miserável, Barnabé é obrigado a se movimentar para o caminho contrário ao que estava seguindo: “Em absoluto desespero foi procurar o seu velho Joseph, mais acendido pela necessidade de apear um fardo de angústia do que iluminado pela esperança de obter um refrigério qualquer” (CLÁUDIO, p. 82 e 83). Reage o judeu em busca de salvação e é ao primo Joseph que procura, desse recebendo apaziguamento do corpo e do espírito. Joseph profetiza sobre a vida de seu primo ajudando-o a sair do seu estado humilhante ao comparar as suas más escolhas às do grande personagem bíblico Salomão, e para as chagas do corpo, receita-lhe um remédio:

E mostra-se o vício contrário à felicidade, e o excesso inimigo do equilíbrio, mas não desfaleças no intento de trilhar o caminho recto, já que é da juventude a imprevidência e a frivolidade, e nem Salomão escapou a essas chagas, e quanto ao que te dilacera de dor as partes vergonhosas, e que te servirá de acrescida sabedoria, decora esta receita (CLÁUDIO, p. 83).

Esse primeiro passo de Barnabé para deixar o “baixo mundo” social e para abandonar seus vícios será prosseguido pelo despertar do interesse pela navegação. O desejo de marear é o meio naturalmente encontrado para se desprender dessa fase lastimável de sua vida, mas também essencial para o autoconhecimento do sujeito.

II.II. O caminho para a transcendência: Barnabé junta-se aos “loucos”

E ignorando por que motivo recôndito, reputava de vagamente criminosa a investida que teimavam em realizar pelo Atlântico, intrusos num universo de que o Omnipresente com rigor os separara, apenas Noé concedendo, e por causas extraordinárias, o direito de sobre as águas flutuar (...) sofrera Barnabé o incômodo da pequenez do ser a quem não foram concedidas barbatanas, nem asas (CLÁUDIO, p. 153).

O mundo ao redor de Barnabé se transforma radicalmente mais uma vez. A mudança de rumo do personagem o leva a um novo espaço, que se por um lado possui regras a serem seguidas, como a hierárquica, por outro lado apresenta maior instabilidade. Nesse novo espaço, não terá o judeu a firmeza da terra sob seus pés, nem a liberdade de ir fisicamente aonde desejar. A insegurança adentra ainda mais o seu interior perante o mundo desconhecido, em que a natureza muda inesperadamente e as tarefas se confundem a cada onda monstruosa ou vento destruidor que atingem as naus. A figura do capitão Vasco da Gama, que deveria incutir nos marujos alguma segurança, se desfaz a cada ameaça de tempestade, assim como ao som da temida palavra pronunciada: “hidra, hidra, hidra, hidra, hidra, hidra” (CLÁUDIO, p. 136).

A teoria da transformação e do movimento contínuos, estudada no tópico anterior, surge nessa nova etapa do romance representada concretamente no espaço a que agora pertence Barnabé: a nau oscila, os ventos mudam de direção, os minutos próximos são imprevisíveis. Barnabé segue peregrinando numa nova direção que, desde o princípio, o começa modificar: “uma subterrânea metamorfose fora nele trabalhando, a irmaná-lo com os peixes do vasto oceano, o que parece constituir fenômeno nem por isso inabitual na carreira dos mareantes de todo o tempo e todo o lugar” (CLÁUDIO, p. 150). O judeu passa a constituir o grupo dos homens loucos, caracterizados pelo anseio de conquistar o desconhecido, de explorar a si mesmo, colocando-se em situações limites como a morte certa. É sobre essa atmosfera de loucura, denotada nesta obra de Mário Cláudio, que fala Maravall ter qualificado as obras barrocas do séc. XVII: “desde que começaram as mudanças suscitadas pela modernidade, houve quem chegasse a pensar que o mundo e os homens estavam atacados de grande loucura” (MARAVALL, p. 248).

Vemos angustiados, o judeu ser dominado pela culpa da empreitada a que se submeteu ao mesmo tempo, paradoxalmente, em que se vê incentivado, por “seres divinos”, a terminá-la. Barnabé é o marujo que desvenda o caminho para as “Índias”, mas não apenas isso, é o marujo “de todo o tempo e de todo o lugar”, como foi citado na epígrafe, ou seja, é a representação do próprio homem que se aventura a enfrentar a eterna busca pelo sentido da vida.

Uma das questões importantes para o encontro de Barnabé consigo mesmo é a religiosidade: obrigado a se converter à religião cristã, devido ao imperialismo de D. Manuel, o personagem encontra no próprio convívio com os cristãos motivos para se firmar ainda mais na sua verdadeira fé, a judaica: “E não se apertava o bucho do moço no medo de que lhe inferissem o judaísmo, porque terror mais vasto aprendera ele no semblante de Vasco da Gama, o que os tornava idênticos nesse plano (...) e afigurava-se a morte religião comum” (CLÁUDIO, p. 111). Outra problemática relevante e essencial, para que se desprendendo do que foi, ele possa renascer um novo homem, está na superação dos erros cometidos no passado e dos medos que o vêm dominando até o presente momento: “não lances o olhar para o que foi, Barnabé, porque desse modo se morre a cada dia da vida e não temas o que se situa adiante, já que haverá alguém de te acompanhar” (CLÁUDIO, p. 97).

Tendo chegado a essas conclusões, do homem peregrino a busca de si mesmo, podemos estabelecer uma relação entre Barnabé e o homem barroco do séc. XVII de que fala Maravall:

O homem (...) é um indivíduo em luta, com toda a comitiva de males que à luta acompanha, com os possíveis proveitos que também a dor traz consigo, mais ou menos ocultos. Em primeiro lugar, encontra-se o indivíduo em combate interno consigo mesmo, fonte de tantas inquietações (...) que do seu interior brotam e se projetam em suas relações com o mundo e com os demais homens. O homem é o ser agônico dentro de si (MARAVALL, p. 260).

O recomeço de Barnabé, que agora peregrina por corredores do labirinto que o levarão à transcendência e não ao obscuro, se caracterizará pela inexistência de fronteiras entre o mundo concreto e exterior e o mundo fantástico e interior. As experiências individuais de quase morte serão marcadas por “aparições” de seres superiores, divinos. Não será, por isso, todavia menos doloroso o percurso.

II. III. O homem “gracioso”[12]: a inexistência de fronteiras entre o real e o fantástico

É nessa conflitualidade carne-espírito que se joga o destino humano. (Informação verbal)[13]

Mário Cláudio constrói perfeitamente, em Peregrinação de Barnabé das Índias, o paradoxo que existe no conflito entre empirismo e fé religiosa. Havia no séc. XVII uma grande tensão entre esses dois pólos, como descreve Maravall, em A cultura Barroca, decorrente da Contra-reforma, que questionou e oprimiu a visão empírica e natural do mundo.

No romance trabalhado, essa tensão transparece em todo o momento, visto que é construído tendo como base para a sua narrativa a miscigenação entre real e fantástico. Há partes do romance em que não sabemos se o que está acontecendo é real ou fruto apenas da experiência interior de Barnabé, como no capítulo “Os Anjos”, no qual o judeu se vê enfeitiçado pela africana com quem tem uma relação sexual pura e elevada, tão perfeita e harmoniosa que nos faz questionar se não seria a mulher um ser de outro mundo, divino. O que podemos dizer, sem equívocos, é que a história de Barnabé das Índias é uma grande alegoria sobre a condição humana da experiência:

A atenção à condição do próprio ser humano, que tanto espaço ocupa na mentalidade barroca traduz-se em uma preocupação com o curso da experiência, por meio da qual não se chegará a possuir a estrutura de um saber universal, mas que em última instância – tal é o caso das leis físicas – pode ser um saber universalizável, e que sempre poderá ser válido para organizar a conduta da vida. A arte barroca nos oferece o resultado de uma observação singularizadora do ser humano (MARAVALL, p. 282).

Será a primeira e inesquecível experiência de quase morte de Barnabé uma espécie de primeiro passo rumo à transcendência. A nau São Rafael é atingida por uma forte tempestade, ameaçando o fracasso da grande empreitada lusitana:

Tomaram-se os homens de extraordinário susto, suspeitosos de que significasse aquela alteração da comum engrenagem dos elementos (...) artimanha dos demônios determinados a imperdir-lhes a difusão do evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo (CLÁUDIO, p. 170).

Barnabé é lançado ao mar junto das águas que invadiram a nau, ele afunda e emerge na vastidão do oceano por indefinidas vezes repetitivamente e sente que não conseguirá resistir. O caos em que se encontram ele e todos os aventureiros parece não ter fim, quando enfim a borrasca termina e então tudo se acalma. Nessa hora, mistura-se a experiência concreta de quase morte à outra fantástica, em que Barnabé vê falar o anjo São Rafael, o mesmo esculpido na proa da nau que carrega o seu nome:

Terminada a imprecação a Iahvé, colhera-o da vertigem de sombras um anjo perfeitíssimo, e atento na face que defronte se lhe postava, entendera o rapaz que não era senão o da figura de proa, representativa do glorioso advogado da sua barca. E sustentando-o num abraço vestido de túnica escarlate, e beijando-o nos beiços de moribundo que já se julgava, nestes termos falou a tranqüilizadora aparição “nada temas, irmão e amigo, pois que venceste agora mesmo a inicial das provações com que deseja o Altíssimo experimentar-te” (CLÁUDIO, p. 173).

A miscigenação entre o palpável da morte e o fantástico se dá de forma natural na narrativa, como se ambos se completassem. Mostra-se, que no ser humano, ainda mais no homem barroco em que a tensão entre os dois pólos é bastante visível, esses dois pólos se encontram sem que a história pareça inverossímil, visto que a narrativa é construída sem limitações entre concreto e não concreto. Mesmo com o narrador em terceira pessoa, não podemos julgar verdadeira ou não, isso em termos empíricos, visto que obviamente foi verdadeira para o personagem em si, a experiência sobrenatural de Barnabé, pois o enredo em nenhum momento se fecha, ou impõe uma forma de leitura ao leitor, mas pelo contrário, forma o que tanto caracteriza as narrativas barrocas de que fala Sant’ana: uma elipse. A troca de narradores, o discurso indireto livre, o estilo próprio de pontuação, a mudança de foco a cada parágrafo não permite esse fechamento, mas deixa o texto aberto para possíveis interpretações, ou melhor, descobertas no percurso como leitor. Isso porque, como citou Maravall, T. Browne: “The world that I regard is my self”[14]. Barnabé é religioso e, portanto, nada mais natural que suas experiências estejam diretamente relacionadas a eventos divinos.

O que importa, todavia, não é a veracidade ou não da experiência fantástica, mas sim a presença desse questionamento da experiência individual que, dentre muitos outros fatores já mencionados, faz do romance de Mário Cláudio barroco.

A sobrevivência à tempestade, alegoricamente interpretada, foi, como disse o anjo, “o inicia das provações”, ou seja, o primeiro e principal obstáculo na vida do homem: o enfrentamento da morte. Obstáculo esse, que independe da condição social ou de instrução de cada um, como fica claro na argüição de São Rafael: “e afirmo-te eu que alguns que superiores te são na ciência e na autoridade, e que nesta viagem se comprometeram, não mais imunes se manifestam ao temor que corrói as entranhas” (CLÁUDIO, p. 173). Tal conclusão nos aponta mais uma vez Vasco da Gama, que também alegoricamente, não enfrenta o medo, a “hidra”, e por isso não descobre as suas “Índias”, como irá admitir mais tarde a Barnabé: “Deus te abençõe, meu rapaz, que foste tu, e mais ninguém, quem essas Índias na verdade descobriu” (CLÁUDIO, p. 278).

A ascensão de Barnabé confunde-se à loucura e vemos no mesmo o homem “gracioso”[15]: “E consentiam em que descuidasse Barnabé as suas tarefas, e sorriam-lhe com a tolerância inconsciente com que enfrentam os comuns, quando não compelidos por essenciais conjunturas de sobrevivência, a suave doideira que se apodera dos santos” (CLÁUDIO, p. 177).

A “loucura” se agrava conforme avança o personagem no seu percurso, passando por novas experiências. O encontro entre ele e a moçambicana é marcado pela descrição mágica e misteriosa[16]. Ao contrário da prostituta que lhe trouxe as chagas, a africana o eleva em corpo e alma, e ficamos na dúvida sobre a mulher que manteve com ele relações sexuais: seria um anjo?

É, porém, a terceira experiência com o divino definitiva para que o judeu alcance a transcendência. Salvo de uma segunda tempestade, que lhe derruba sobre o peito “o pau com as velas rasgadas” (CLÁUDIO, p. 198), o anjo o leva para conhecer o Universo e os demais mistérios da vida, desvendo principalmente o mistério que de todo homem tira o sono: a morte:

“agora te visito, Barnabé, para que compreendas, e te despojes das algemas que te ferem os pulsos, e se te desvende o que para além das dunas do medo se situa, e atravessaste a morte de novo, e te alimpaste das chagas que te atormentavam, porque está morto o que vive, e vivo o que morre, e transpuseste as fronteiras que submetem as criaturas (...) e às Índias verdadeiras apostaste, pois que sempre se alojaram elas nos ocultos de ti” (CLÁUDIO, p. 200).

Interessante é a declaração em entrevista de Mário Cláudio a respeito do que pensa sobre a morte, e que podemos aproveitar neste trabalho para enriquecer ainda mais a nossa conclusão sobre a descoberta de Barnabé: “e nessa viagem descobre, através da travessia do medo, se quisermos, que a Morte não existe, que apenas um fenômeno tão natura como o nascimento. Descobre que a mesma dever-se-ia opor ao nascimento e não à vida” (Informação verbal)[17].

III. Considerações finais: o descobridor das Índias

Peregrinação de Barnabé das Índias é um convite às viagens do ser humano pelo seu grande universo interior, ao mesmo tempo em que reconstrói de forma extremamente crítica e irônica a história da expansão marítima portuguesa.

O romance em si já é uma grande alegoria: acompanhamos o homem peregrinar pela vida em busca da paz do corpo e do espírito. O corpo desse homem, como todos os demais corpos do mundo, se transformará em ruína, disso não há escapatória. Todavia, a ruína não precisa ter um fim em si mesma, como acontece a Vasco da Gama, que não encontra as suas Índias, porque não enfrenta a si e a seus medos; pelo contrário, aprisiona-o dentro do quadro que decora a sua sala, e confessa, apesar de querer manter aos seus semelhantes a falsa superação de seus temores, nada ter descoberto nas suas viagens:

E perguntando-me alguém que oceanos atravessei, e a que enseadas terei aportado, resposta nenhuma me colhe, vinda dos fundos de um sono de chumbo, porquanto sonho, e em nada mais, singraram as armadas em que me meti (CLÁUDIO, p. 233).

Barnabé, o simples judeu de Ucanha, o homem excluído da sociedade, que não carrega títulos, chega também à ruína física da velhice, mas não à interior, porque encontrou as respostas para as suas perguntas, não existindo mais para ele o mistério que a todos os homens atemoriza: “e que te importa a morte em que se enredam os que em torno de ti adormeceram, se o que nela se contém nenhum mistério implica” (CLÁUDIO, p. 242). Até representada, mesmo que através de extremada ironia, foi a sua ascensão no mundo concreto, visto que tem Joseph a sua profecia, de que ocuparia seu primo o acento de São Pedro, realizada, porque Barnabé serve ao pintor Gaspar Vaz de modelo para a sua pintura do santo: “tudo conforme à profecia do seu primo Joseph, o qual lhe prognosticara que no sólio do Vigário, e com invulgar solenidade, pelos séculos dos séculos haveria ele de assentar” (CLÁUDIO, p. 274).

Tudo isso nos revela a grande alegoria que é a obra de Mário Cláudio, repleta de outras alegorias menores, como a hidra, de Vasco da Gama, a nau São Rafael, o rio descrito por André Mendes, os mares, as tempestades, dentre muitas outras. Walter Benjamin discute as variadas funções e origens da alegoria relacionando-a ao contexto barroco, principalmente quando o tema é a morte. Abarca a alegoria as características ambíguas que denotamos no curso deste trabalho: “Mas a ambigüidade, a multiplicidade dos sentidos é o traço fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações. Mas essa ambigüidade é a riqueza do desperdício” (BENJAMIN, 1984, p. 199).

Acompanhamos toda a metamorfose a que Barnabé foi submetido, e a que são submetidos todos os homens no decorrer da vida, podendo ter sucesso, como teve o personagem judeu, ou não, tal foi o caso do comandante da São Rafael. Vimos, baseados na teoria do movimento e da transformação ilustrada, que está o ser humano consignado a se mover, sendo-lhe inadmissível o descanso, o repouso. A vida, o grande labirinto do qual só existe a temida e única saída, condena o homem a agir, para esse não restando alternativa de senão fugir dos seus medos, aprisionando-os dentro de si, para que não saiam e dessa forma não se depare com os mesmos; ou permitir o encontro consigo mesmo e com seus temores, encontrando, assim a paz e a redenção: “nem de salteadores, nem de fantasmas, me temo, vencido o medo destas cousas pelo medo que experimentei” (CLÁUDIO, p. 237).

O romance, graças às entrelinhas, ironias, fragmentação, ritmo próprio da viagem, forma elíptica, alegorias, ausência de fronteiras ou limites entre as dimensões empíricas e fantásticas, nos permite uma leitura profunda, detalhista e instigante do homem, ser em eterna busca, em eterno conflito consigo mesmo, além de se revelar essencialmente barroco: “a grande empresa não é a que se faz caminhando por fora, mas a que se faz caminhando por dentro. A tese do livro é fundamentalmente essa” (informação verbal)[18].

Notas:

[1] “Muitos são, portanto, as viagens que o romance tece. Uma é aquela em que a superação das adversidades leva à glória, às benesses. O romance surpreende Vasco da Gama, na velhice, contabilizando os lucros que obtivera, porquanto é o sujeito dessa viagem em busca da fama cujo nome verdadeiro é a vã cobiça, como já sabia o Velho do Restelo. Viagem em que é uma geografia por usurpar. Outra viagem que se faz pelos subterrâneos do ser, pela superação espiritual das misérias do corpo e da alma, viagem interior das sombras à luz, em que não se honrarias, mas conhecimentos” (ALVES, 1999, p. 1).

[2] CLÁUDIO, p. 63.

[3] Comunicação feita por Mário Cláudio em 18 de junho de 1998 no PÚBLICO, Lisboa.

[4] Ibdem.

[5]Gracián apud. MARAVALL. José António. A cultura do barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. p. 289.

[6] Grifo meu.

[7] “as pedras do cais por leito, e os astros por tecto” (CLÁUDIO, p. 76).

[8] “E não será de surpreender que, criado na habituação dos remansos de Ucanha que a estada em Lamego não bastara para anular, me atordoasse com a balbúrdia de gentes disparatadas, enxameando as ruas por onde constituía assinalável proeza fazer progredir a fileira dos escudeiros e dos criados (...)expunham as pescadeiras a safra da noite anterior, reclamavam as fruteiras as primícias da cereja, apuravam as frigideiras a gostosura dos salmonetes, das azevias e das solhas...” (CLÁUDIO, p. 72 e 73).

[9] Ibdem, p. 5.

[10] palavra usada pelo próprio autor: “com a vista a ceder às graças da imperatriz de seus instintos” (CLÁUDIO, p.82).

[11] Grifo meu: a palavra “cabra” está em negrito para destacar a condição de animal de ambos personagens, Barnabé e a prostituta.

[12] MARAVALL, José Antonio. p. 150.

[13] Comunicação de Mário Cláudio ao Expresso em 06 de julho de 1998 às 18hrs e 16min.

[14] MARAVALL, p. 283.

[15] Ibdem, p. 14.

[16]p. 182 e 183.

[17] Ibdem, p. 3.

[18] Ibdem, p. 14.


IV. Referências Bibliográficas.

ALVES. Maria Theresa Abelha. A peregrinação iniciática de Barnabé das Índias. In___: Anais do 6º Congresso da AIL (Associação Internacional de Lusitanistas). Rio de Janeiro: UFRJ, 1999 __ Cd ROM.

BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

_________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.

CLÁUDIO, Mário. Peregrinação de Barnabé das Índias. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998.

FRANCO. Luísa Mellid-. A oculta viagem de Vasco da Gama. Portugal: Expresso, 1998. Entrevista. Disponível em: . Acesso em: 10 maio de 2002.

MARAVAL. José Antonio. A cultura do barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.

QUEIROZ. Luís Miguel. À descoberta de duas Índias. Portugal: Público, 1998. Entrevista. Disponível em . Acesso em: 10 maio 2002.






Marcela Teixeira Barbosa

quinta-feira, 2 de julho de 2009

João Cabral de Melo Neto e Fernando Sylvan: os mares


Infância

(Fernando Sylvan - Timor Leste)


as crianças brincam na praia dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos
a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar
A voz fagueira de Oan Timor


Sem título (João Cabral de Melo Neto - Brasil)

O mar soprava sinos,
Os sinos secavam as flores,
As flores eram cabeças de santos.

Minha memória cheia de palavras,
Meus pensamentos procurando fantasmas
Meus pesadelos atrasados de muitas noites.

De madrugada, meus pensamentos puros
Voavam como telegramas;
E nas janelas acesas toda a noite
O retrato da morta
Fez esforços desesperados para fugir.
Pedra do Sono


Proposta: Pequena comparação entre os poemas de Fernando Sylvan, Infância, e de João Cabral de Melo Neto, sem título.



No poema Infância, de Fernando Sylvan, nos deparamos com o tom saudosista do eu lírico pela etapa da vida em que não há limites entre o fantasioso e o epaço onde está a concretude das atividades e relações humanas: a infância. No mundo da criança sadia e protegida não existem fronteiras entre os homens e entre as nações, entre o idealizado e o encontrado no cotidiano, e é da fase adulta que lastima o eu lírico a efemeridade desse “território” sem regras criadas consecutivamente pelo próprio sujeito, junto à imposição sociocultural. Uma vez retirado da inocência, dificilmente alcançará o indivíduo a liberdade de espírito, assim como a autonomia para circular por esses diferentes mundos cheios de “manchas verdes”, que seriam, em outras palavras, a esperança.
O eu lírico de João Cabral de Melo Neto se mostra lastimoso da vida que o tempo leva, da impotência humana perante a vida que se esvai, que se transforma, que desaparece, tornando-se apenas “palavras”, “fantasmas”, “pesadelos”. Não se pode dizer que há neste poema o saudosismo tranqüilo do primeiro, pois nele não existe a chance de voltar, sendo impossível recuperar o tempo perdido; ao contrário daquele em que, nos últimos versos, notamos um pequeno espaço para o otimismo através da locução adverbial “muitas vezes”, que deixa margens para possíveis voltas ao que já foi: “muitas vezes as crianças crescem/ sem voltar à praia...”. Ou seja, não é impossível resgatar um pouco de quem se foi no melhor da vida: mesmo que não todas as vezes, existem aqueles que por poucos momentos ainda conseguem esse retorno quando necessário.
Interpretados sinteticamente os dois poemas, optamos aqui por destacar em ambos uma imagem comum: o mar. Se em Infância, o mar surge como uma alegoria aos desejos, esperanças e idealizações das crianças, e, até mesmo, como a própria infância, fase ingênua e livre dos preconceitos entre os homens; no poema de Cabral, o mar aparece como o precursor de todas as mudanças, ou seja, o tempo, como o elemento que empurra a primeira peça de dominó, que derrubará todas as outras postas em fileira: é o mar que sopra os sinos, que secarão as flores, que foram cabeças de santos.
De uma forma ou de outra, o que pode se pode destacar é a instabilidade que caracterizam esses mares. O mar representa o que muda, o que passa independentemente do desejo humano: a infância é passageira, porque o tempo é movimento contínuo e se assim o é, poucos buscarão a doce fase que por ele foi dissolvida. Em Sylvan, busca-se o tempo transformado, a praia que as ondas do mar já modificaram: “as crianças crescem sem voltar à praia e sem voltar ao mar”; em Cabral anseia-se pela libertação do inevitável, de si mesmo, das lembranças, único vestígio deixado pelo tempo, o sopro do mar: “E nas janelas acesas toda a noite/ O retrato da morta/ fez esforços desesperados para fugir”. As janelas acesas, de Cabral, mostram na noite um sujeito atormentado, que não dorme, e talvez não durma porque não pode voltar, como lastima Fernando Sylvan em seus versos, mas também não consegue se libertar das lembranças da vida e das vidas que já não existem mais.



Marcela Teixeira Barbosa

As ilhas de Drummond e Saramago: um diálogo entre "Divagações sobre as ilhas" e "O conto da ilha desconhecida"


Proposta e biografia:

Tecer um diálogo entre Divagações sobre as ilhas (1978), do escritor e poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, e O conto da ilha desconhecida (1998), de José de Sousa Saramago, este português, é o principal objetivo do presente trabalho, que busca em ambos os contos semelhanças e divergências acerca da reflexão sobre o homem contemporâneo e os seus anseios. Não somente isso, pretende-se, por meio deste, analisar os recursos narrativos peculiares aos diferentes autores, nos quais, tendo comparadas as suas biografias, se pode notar alguma semelhança.
Apesar de oriundos de diferentes nações, Drummond, o Brasil, e Saramago, Portugal, podemos destacar alguns traços comuns em suas trajetórias, como o fato terem nascido em cidade pequena, o primeiro em Itabira, interior de Minas Gerais, e o segundo na aldeia de Ribatejo, chamada Azinhaga, se mudando com a família dois anos depois para Lisboa. Os autores também se assemelham quanto à vida simples, visto que Drummond pertencia a uma família de fazendeiros em decadência, e Saramago à classe média baixa da sociedade, o que o impediu de ingressar, apesar da paixão pelos estudos, no curso superior, ao contrário do poeta brasileiro, que apenas por insistência da família se formou em farmácia na cidade de Ouro Preto, em 1925.
Com diferença de vinte anos de idade, Drummond (31 de outubro de 1902) e Saramago (16 de novembro de 1922), os dois revelam em suas obras literárias uma visão crítica a respeito do sistema ideológico e político de seu país. Drummond, por exemplo, desde cedo se mostrou irreverente, quando foi expulso por motivo de “insubordinação mental” do Colégio Anchieta de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e mais tarde foi o principal precursor do modernismo no seu estado, fundando com outros escritores A Revista, que teve vida breve, mas foi essencial para a afirmação do movimento em Minas Gerais. Saramago, em tempos de repressão, por exemplo, foi demitido do jornal Diário de Notícias, após cometer o que acreditavam ser “exageros” da Revolução dos Cravos. A partir dessa informação, notamos outra semelhança: ambos trabalharam em jornais, desempenhando função quer fosse de cronista, poeta, contista dentre outras. Além disso, Saramago passa a se dedicar, após ser demitido, apenas à literatura e Drummond também, após se aposentar, em 1962.
A ironia, sátira e ceticismo social são características comuns aos dois autores, que antes de se solidificarem como os grandes intelectuais e críticos percorreram longo caminho literário, indispensável para o reconhecimento pela crítica literária em conseqüência do amadurecimento.
Drummond faleceu no dia 17 de agosto do ano de 1987, logo após a morte de sua única filha, Maria Julieta Drummond de Andrade; e Saramago continua a escrever incessantemente, tendo publicado agora em 2009, o seu mais recente romance A viagem do elefante.
Ao realizar esse jogo comparativo sobre pouco das vidas, descritas muito resumidamente, dos grandes autores, almeja-se, desde a introdução, despertar, ou quem sabe, persuadir o leitor do trabalho ao diálogo que se estabelecerá nas próximas páginas, engendrando-no o movimento desse olhar crítico e comparador.

Sobre os enredos e as narrativas

Publicado em 1998, O Conto da Ilha Desconhecida é um livro do escritor português José Saramago em que o leitor poderá ler o aspecto das relações humanas e políticas e sociais através de uma grande metáfora. Tais relações, muitas vezes, serão expressas em forma de crítica, como é o caso da crítica ao poder governamental e à burocracia. Outras serão percebidas através das relações entre as personagens, como a questão do amor. Outras, ainda, são identificadas através de reflexões que o leitor pode traçar a partir da conduta e da moral da personagem principal: o homem.
Tudo começa com um homem que resolve ir à porta do castelo do rei para fazer-lhe um pedido. Como é de costume, o rei não atende pessoalmente a pedidos, mas o homem insiste que quer fazer seu pedido somente ao rei. Após três dias, o rei resolve atender ao homem e aparece à porta do castelo para perguntar-lhe qual era o seu pedido. O homem pede ao rei que lhe dê um barco. Estranhando o inusitado do pedido, o rei pergunta-lhe para que quer o barco. E, para maior surpresa do rei, o homem responde-lhe que objetiva seguir em busca da Ilha Desconhecida. Em tom de galhofa, o rei diz ao homem que já não existem ilhas desconhecidas e que seu objetivo é uma perda de tempo, visto que as ilhas existentes já são conhecidas e mapeadas, sendo todas sua propriedade real. O homem ousa e insiste. O rei diz-lhe então que vá, mas que, no caso de encontrar a Ilha desconhecida, deverá entregá-la ao rei. O homem discorda. Cansado do homem e acreditando ser toda aquela empreitada uma grande bobagem, e diante de uma indiscutível manifestação popular que se formou ao redor daquele pedido, o rei resolve ceder. Concede ao homem a tão esperada embarcação; não uma grande, visto que o rei não queria perder dinheiro; mas uma que fosse segura e navegasse bem, visto que ele não queria se responsabilizar por nenhum possível acidente; na condição de não lhe ceder junto à tripulação, a qual o homem deveria formar sozinho.
Toda a cena é presenciada pela mulher da limpeza, que inicialmente atendeu ao homem que bateu na porta, e depois passou a escutar a conversa. Após a saída do homem, a mulher, abandonando seu posto de limpeza do castelo, sai pela porta das decisões, decidida a seguir aquele homem em sua busca pela Ilha Desconhecida. Segue, então o homem até a Doca e o observa, de longe, a falar com o capitão do porto. O homem mostrava a ele o cartão do rei e pedia-lhe a embarcação que tinha direito. O capitão do porto pergunta ao homem se ele tem carta de navegação. Ao ouvir-lhe que não, tenta dissuadi-lo da empreitada. Vendo fracassada a sua tentativa, aponta ao homem a embarcação que lhe daria, e nesse momento a mulher da limpeza se revela como a primeira tripulante que irá acompanhá-lo. Ela vai ao barco e começa a limpeza, ele segue em busca de tripulantes para iniciarem a viagem. O dia passa, a noite chega. O homem retorna ao barco, a mulher a sua espera. Constatam juntos, dentro do barco, a realidade que não viam: ninguém mais vai acompanhá-los nessa louca empreitada. Estão sozinhos, na busca de um sonho, o sonho da Ilha Desconhecida, o sonho de um mundo diferente.
Divagação sobre as ilhas é o texto de abertura do livro de crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Diferentemente de uma narrativa comum, com enredo, tempo e personagens, a crônica de Drummond assume um tom confessional em que o seu narrador nos dá a ver seus desejos interiores.
A divagação se inicia a partir de uma hipótese de surgimento de alguma pecúnia ao narrador. Considerando está possibilidade, surge a questão do que seria feito com o dinheiro, no que se decide comprar uma ilha. A imaginação, então, começa a navegar e passamos a ler a idealização dessa ilha que se almeja adquirir. A divagação gira em torno de como será esta ilha. Primeiramente, são dados ao leitor os elementos que esta ilha deve conter em si, e, em seguida os elementos que para ela serão carregados. Também será discutida a questão dos moradores ou visitantes desta ilha, não sendo permitida a entrada de qualquer pessoa. A crônica de Drummond vai tratar da idealização de um mundo paralelo: a ilha, no qual os defeitos da terra firme não existem.
Cabe, então, comparar a estrutura narrativa do conto do escritor português Saramago com a estrutura narrativa da crônica do poeta brasileiro Drummond. Para falar da ilha, Saramago dá voz a um narrador onisciente que tem um enredo, do qual não participa, para contar. Drummond também dá voz a um narrador, mas aqui, ele não é onisciente e não se vale de enredo. O foco narrativo da crônica de Drummond é em primeira pessoa, e mais do que personagem, o narrador drummoniano é o confessor das divagações.
Nesse sentido, o tom das narrativas tratadas aqui é diverso. Em Saramago, temos uma estória que é contada ao leitor, enquanto que em Drummond temos uma confissão que é feita a ele. Saramago trata da questão da ilha por meio de um narrador que narra uma estória a parte para tal fim, os sentimentos deste narrador não são expressos, ele está de fora e não vive a busca pela ilha. Drummond trata da mesma questão através de um narrador que se envolve. É dele a suposição de ter dinheiro para adquirir a ilha e é dele a divagação pela ilha ideal que compraria. O narrador de Drummond é o dono dos pensamentos que se desenvolvem na crônica, estando, portanto, intimamente envolvido com ela.
A diferença do tom das narrativas permite, também, a identificação da diferença entre as personagens das mesmas. Enquanto o narrador de Saramago se vale de personagens para narrar a estória sobre a ilha desconhecida, o narrador de Drummond não necessita delas, já que ele não se vale de enredo para falar da ilha. No conto de Saramago, chama a atenção o fato da identidade das personagens não ser importante para o desenrolar da narrativa. As personagens não possuem nome, sendo identificadas pela posição social que ocupam. Disso, pode-se entender uma aproximação entre as narrativas no que tange a escolha da apresentação das personagens. Em ambas, seja pela ausência de personagens (caso de Drummond), seja pela não identificação identitária das mesmas (caso de Saramago), nota-se um tênue descompromisso no que tange o indivíduo, donde se conclui que o desejo pela ilha não é individual, mas universal.
A ilha é, em ambos os textos, uma tentativa de fuga à terra firme. Ela funciona como metáfora da busca pelo novo, pelo sonho, pelo mundo diferente do que até aqui se pode encontrar.

As Ilhas de Drummond e Saramago

Em Divagação sobre as ilhas, o narrador deseja uma ilha que não seja nem muito perto e nem muito longe do litoral, pois para ele “a arte do bem viver” está relacionada não com uma fuga permanente, mas com uma “fuga relativa” do mundo. Muitos de nós, seres humanos, sonhamos durante a vida inteira, com uma ilha, de acordo com os nossos diferentes anseios, enumerados pelo autor, como natureza, solidão ou felicidade não alcançada na sociedade comum. Entretanto, o narrador, quando pensa em comprar uma ilha, aponta outros motivos para estar nela, já que, segundo ele, carrega consigo a solidão, e quanto à felicidade, diz: “E felicidade não é em rigor o que eu procuro” (ANDRADE, 1973, p. 796).
A ilha o satisfaz por ser uma pequena porção de terra em que se exclui o ruim do mundo e se resume o que nele há de bom, além de possuir “a vantagem de ser quase uma ficção sem deixar de constituir uma realidade” (ANDRADE, 1973, p. 796). Ou seja, o sujeito pode caminhar pelos dois planos, o imaginário e o real, sem abandoná-los. A ilha também é a busca do indivíduo pela liberdade de desfrutar a vida, objetivo primeiro do homem, perdido em meio ao progresso, que impõe regras e normas de se viver; antes do espaço para consigo mesmo, tem o sujeito o dever das taxas e a submissão às fiscalizações:
(...) o progresso técnico teve isto de retrógrado: esqueceu-se completamente do fim a que se propusera, ou devia ter-se proposto. Acabou com qualquer veleidade de amar a vida, que ele tornou muito confortável, mas invisível. Fez-se numa escala de massas, esquecendo-se do individuo, e nenhuma central elétrica de milhões de kw será capaz de produzir aquilo de que precisamente cada um de nós carece na cidade iluminada: certa penumbra. (ANDRADE, 1973, p. 796).

Noutras palavras, na ilha é possível constituir a “veleidade de amar”, é também possível nos fazer enxergar o que estava invisível diante de nossos olhos e nos dá a “penumbra” de que nós precisamos.
O narrador ao falar de sua ilha, idealiza os elementos que ela deve conter, como a presença de animais de plumagem gloriosa que não sejam superiores à força e ao medo humano. Não se deve levar, contudo, bíblia, nem discos, mas é fundamental levar um amigo que saiba contar histórias e o jornal, único meio que o comunicaria as notícias da sociedade que teria deixado. Por ser a ilha um lugar de recreação, os poetas que forem a este lugar devem deixar a profissão, os seus “tiques profissionais”, o “tecnicismo” e a “excessiva preocupação literária”. Para pertencer à ilha, os homens devem estar em harmonia com o meio, eles devem ser “homens razoáveis, carentes, humildes, inclinados à pesca e à corrida a pé, saibam fazer uma coisa simples para o estomago, no fogão improvisado” (ANDRADE, 1973, p. 797). O narrador aconselha também aos leitores, quando forem à ilha, a deixarem na cidade toda os problemas de hegemonia, ciúme e enfim, todos os perigos da convivência urbana a que estão inseridos.
Segundo o narrador, a idéia de fuga tem sido alvo de críticas há anos, seja a fuga de um perigo, de um sofrimento ou de uma caceteação. É como se quisessem que o homem encarasse apenas dura realidade, sem fugas, o que faz com que eles sejam infelizes, e conseqüentemente, fazendo o seu próximo infeliz. Para o narrador não há porque ter sempre o pensamento voltado para os problemas do mundo e a para a salvação do mesmo, pois segundo ele, “por bondade abstrata nos tornamos atrozes. E o pensamento de salvar o mundo e dos que acarretam as mais copiosas e inúteis carnificinas” (ANDRADE, 1973, p. 798). É justamente em prol do pensamento de bondade e da constante vontade de salvar o mundo, que as sociedades vêm há séculos entrando em guerra. É através dessas reflexões que o narrador reafirma a necessidade de irmos para as ilhas, lugar de “meditação despojada”, ir às ilhas é uma forma de não sermos cúmplices dos “equívocos mentais generalizados”. Sendo assim, podemos concluir que a ilha é “o refugio último da liberdade, que em toda parte se busca destruir” (ANDRADE, 1973, p.798). É por isso que devemos, conforme o narrador disse, amar a ilha.
No conto de José Saramago, O conto da ilha desconhecida, várias são as interpretações encontradas em relação ao conceito de “ilha”. A principal é dita pelo próprio escritor, quando esse menciona que “todo homem é uma ilha”, (SARAMAGO, p. 41/42). Logo, a procura do personagem principal é encontrar a si mesmo, e para isso é necessário fugir da realidade, deixando tudo para trás e começar uma vida nova, longe de tudo que estava relacionado com sua vida no “continente”. A vitória está em superar-se, ir onde nenhum outro jamais esteve, descobrir algo fora de si que eleve o entendimento das verdades mais profundas, escondidas na alma como uma ilha.
Sem profissão aparente o personagem segue no compromisso e determinação de ser e aprender tudo o que é necessário para realizar seu sonho, desde capitão de um barco a cultivador de grãos e frutos. Ele acredita tanto nisso, que com muito otimismo e seriedade, desafia a autoridade do rei, a experiência do capitão de mar e a todos os candidatos à marinharia em busca de seu objetivo, que é, na verdade, a busca pelo seu “eu” interior, sua identidade e sua ocupação. Esta busca por si mesmo, no mundo literário, é uma das mais antigas, relacionando o mistério e a coragem, refletidos em cada um de nós, fazendo desta busca um sonho universal.
Ao relacionarmos os dois textos, percebemos que ambos falam da procura pela “ilha” dentro de cada um de nós. A ilha, encontrada nos mesmos, e resumidamente aqui descritas, é a alegoria da busca incessante do ser humano por si mesmo, pelo autoconhecimento, por um espaço dentro de si que o liberte de um sistema fechado em que as regras, assim como as mediocridades, já existiam muito antes de ele chegar ao mundo. Se por um lado, temos em Divagação sobre as ilhas, essas no plural, um narrador franco e direto, que descreve a sua ilha, mas deixando no título subentendidas as ilhas dos demais indivíduos, inclusive a do leitor, ou até mesmo, outras ilhas diferentes dentro de si; temos, por outro lado, em O conto da ilha desconhecida, um texto repleto de recursos narrativos que fazem do leitor mais um investigador dos sentidos de suas metáforas, do que um confidente, como acontece no primeiro.
Tanto o conto do brasileiro quanto o do português nos permite refletir acerca desse conflito existencial do sujeito que, se desde o Renascimento deixou de mirar ao divino para estar consigo, agora, na contemporaneidade, se vê perdido em meio ao barulho do progresso sem tempo e espaço para a realização desse encontro com ele mesmo.
Para concluir, podemos interligar os contos afirmando que a tentativa do mal do progresso, denotada por Drummond, não pode ser um entrave, ou em outras palavras, um forte elemento de desistência para cada indivíduo de encontrar a sua ilha desconhecida, descrita por Saramago, porque por mais que se tente no atual sistema capitalista (e o antigo burguês) transformar o homem em cópias uns dos outros, são todos diferentes entre si: únicos. Resta apenas desafiar “o rei” – o sistema – e incentivar os demais a deixar o comodismo e a embarcar para as suas ilhas desconhecidas, visto que sempre haverá o que se descobrir.

Referência bibliográfica:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1973. (p. 795 – 798).

SARAMAGO, José de Sousa. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Enciclopédia livre. José Saramago. Disponível em: <>. Acesso em: 18 de junho de 2009.

Enciclopédia livre: Carlos Drummond de Andrade. Disponível em: <>. Acesso em: 18 de junho de 2009.

Autores do trabalho: Carolina Chebel, Luiz Daniel, Marcela Teixeira e Patrícia Roque