quinta-feira, 2 de julho de 2009

João Cabral de Melo Neto e Fernando Sylvan: os mares


Infância

(Fernando Sylvan - Timor Leste)


as crianças brincam na praia dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos
a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar
A voz fagueira de Oan Timor


Sem título (João Cabral de Melo Neto - Brasil)

O mar soprava sinos,
Os sinos secavam as flores,
As flores eram cabeças de santos.

Minha memória cheia de palavras,
Meus pensamentos procurando fantasmas
Meus pesadelos atrasados de muitas noites.

De madrugada, meus pensamentos puros
Voavam como telegramas;
E nas janelas acesas toda a noite
O retrato da morta
Fez esforços desesperados para fugir.
Pedra do Sono


Proposta: Pequena comparação entre os poemas de Fernando Sylvan, Infância, e de João Cabral de Melo Neto, sem título.



No poema Infância, de Fernando Sylvan, nos deparamos com o tom saudosista do eu lírico pela etapa da vida em que não há limites entre o fantasioso e o epaço onde está a concretude das atividades e relações humanas: a infância. No mundo da criança sadia e protegida não existem fronteiras entre os homens e entre as nações, entre o idealizado e o encontrado no cotidiano, e é da fase adulta que lastima o eu lírico a efemeridade desse “território” sem regras criadas consecutivamente pelo próprio sujeito, junto à imposição sociocultural. Uma vez retirado da inocência, dificilmente alcançará o indivíduo a liberdade de espírito, assim como a autonomia para circular por esses diferentes mundos cheios de “manchas verdes”, que seriam, em outras palavras, a esperança.
O eu lírico de João Cabral de Melo Neto se mostra lastimoso da vida que o tempo leva, da impotência humana perante a vida que se esvai, que se transforma, que desaparece, tornando-se apenas “palavras”, “fantasmas”, “pesadelos”. Não se pode dizer que há neste poema o saudosismo tranqüilo do primeiro, pois nele não existe a chance de voltar, sendo impossível recuperar o tempo perdido; ao contrário daquele em que, nos últimos versos, notamos um pequeno espaço para o otimismo através da locução adverbial “muitas vezes”, que deixa margens para possíveis voltas ao que já foi: “muitas vezes as crianças crescem/ sem voltar à praia...”. Ou seja, não é impossível resgatar um pouco de quem se foi no melhor da vida: mesmo que não todas as vezes, existem aqueles que por poucos momentos ainda conseguem esse retorno quando necessário.
Interpretados sinteticamente os dois poemas, optamos aqui por destacar em ambos uma imagem comum: o mar. Se em Infância, o mar surge como uma alegoria aos desejos, esperanças e idealizações das crianças, e, até mesmo, como a própria infância, fase ingênua e livre dos preconceitos entre os homens; no poema de Cabral, o mar aparece como o precursor de todas as mudanças, ou seja, o tempo, como o elemento que empurra a primeira peça de dominó, que derrubará todas as outras postas em fileira: é o mar que sopra os sinos, que secarão as flores, que foram cabeças de santos.
De uma forma ou de outra, o que pode se pode destacar é a instabilidade que caracterizam esses mares. O mar representa o que muda, o que passa independentemente do desejo humano: a infância é passageira, porque o tempo é movimento contínuo e se assim o é, poucos buscarão a doce fase que por ele foi dissolvida. Em Sylvan, busca-se o tempo transformado, a praia que as ondas do mar já modificaram: “as crianças crescem sem voltar à praia e sem voltar ao mar”; em Cabral anseia-se pela libertação do inevitável, de si mesmo, das lembranças, único vestígio deixado pelo tempo, o sopro do mar: “E nas janelas acesas toda a noite/ O retrato da morta/ fez esforços desesperados para fugir”. As janelas acesas, de Cabral, mostram na noite um sujeito atormentado, que não dorme, e talvez não durma porque não pode voltar, como lastima Fernando Sylvan em seus versos, mas também não consegue se libertar das lembranças da vida e das vidas que já não existem mais.



Marcela Teixeira Barbosa

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