sábado, 13 de dezembro de 2008

Artigo: Literatura e Sala de Aula


A literatura e a sala de aula: alienação ou novos horizontes?

Não lemos nem escrevemos poesia porque é bonitinho.
Lemos e escrevemos poesia porque somos humanos. A raça humana está repleta de paixão.
E medicina, advocacia, administração e engenharia... são objetivos nobres e necessários para
manter-se vivo. Mas a poesia, beleza, romance, amor... é para isso que vivemos
John Keating

Introdução
Escolhi como epígrafe deste meu artigo a fala do carismático e irreverente professor de literatura John Keating, personagem do longa norte-americano Sociedade dos Poetas Mortos (1989), porque nela encontrei a minha resposta para inúmeras questões acadêmicas do mundo das licenciaturas em arte e literaturas, presentes também, muitas das vezes, em nossas escolas de ensino fundamental e médio.
O filme, que completa quase duas décadas, retrata bem a chegada não apenas de um novo professor a uma escola tradicional preparatória dos EUA, mas com ele, e através dele, a chegada de uma nova corrente ideológica de uma diferente forma de se entender e viver a literatura dentro da sala de aula. Se durante séculos, conforme nos afirma Teresa Colomer , a literatura era ferramenta de construção moral e cultural do indivíduo, e chegou ao século XIX com fins didáticos para o desenvolvimento da retórica, atribuindo, conseqüentemente, muito valor aos autores desses textos e, portanto, tornando o ensino da literatura o ensino da vida desses, ou seja, biográfico e mais tarde, em princípios do século XX, teve como objeto primordial a análise e avaliação da sua forma, o que diminuiu a relevância autoral, cabe-nos perguntar qual seria o papel da literatura nos dias de hoje (séc. XXI), em que tanto a formação moral, quanto intelectual do indivíduo (o que se dirá, então, da importância da análise da construção de textos literários?), bastante valorizada séculos atrás, não são tão ou mais relevantes do que o poder de compra e venda do nosso atual sistema capitalista. Em outras palavras, por que e, principalmente, como ensinar literatura na era em que o lucro e o imediato são as forças propulsoras do estar no mundo?

1. Justificativas variadas

Não faltam justificativas para a presença da literatura nas escolas, devem ser incontáveis os ensaios, artigos e teses que abarcam essa problemática, o que talvez leve a pergunta “Por que ensinar literatura nas escolas?” parecer redundante; todavia notamos na prática, não somente em sala de aula, mas em demais espaços, que não há excessos ao se formar tal indagação, visto que, no sistema ao qual pertencemos, em que se pretende a unificação do pensamento que visa o lucro imediato, sem o questionamento do indivíduo sobre si e sobre o seu arredor, quanto menos se incita a reflexão, melhor.
No próprio filme hollywoodiano, a resposta sobre a finalidade da literatura aparece com facilidade através das palavras de John Keating, “Devemos constantemente mudar a nossa visão”, sendo o contato com diferentes discursos, tanto de autores variados quanto de formas diversas (poesia ou prosa), o precursor dessa mudança, essencial no mundo que se transforma a cada dia em todos os aspectos possíveis e inimagináveis. Dessa forma, podemos dizer, que a literatura seria uma das responsáveis por renovar os conhecimentos de mundo do sujeito leitor de forma não autoritária: ela renova a partir das próprias reflexões do ledor em contato com o texto e com o mundo, de maneira que ele possa pensar o seu universo e agir na história como um ser crítico, ativo e consciente.
Antonio Cândido trata a questão da possibilidade do acesso à literatura por todas as pessoas como um direito do ser humano:

a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (...) a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual .

A partir da constatação do teórico, presume-se que, sendo o espaço escolar democrático, ou seja, em que todos, pelo menos a partir da década de setenta, indiferentemente de cor ou de classe social, terão acesso aos mais variados conhecimentos sobre o mundo em que estão inseridos, é por lá que se deve iniciar o ensino de literatura. Logo, se o indivíduo não teria oportunidade de conhecer literatura em casa, com a sua família, porque os pais são analfabetos e, portanto, não possuem livros em casa, ou porque são alfabetizados, mas iletrados , e por isso, mesmo sabendo ler, não têm o convívio pleno com o mundo da escrita e da leitura, será no espaço escolar que a chance de se apropriar cabalmente do mundo da leitura e da escrita lhe será concedida. Além disso, a escola tem a autoridade para permitir que os sujeitos de hoje, tão atribulados com a rapidez e volatilização de informações, devido ao avanço contínuo da tecnologia, designem um tempo para o aprendizado e, portanto, para a leitura.

2. COMO ensinar literatura?
Temos de viver, na prática, o reconhecimento óbvio de que nenhum de nós está só no mundo. cada um de nós é um ser no mundo. com o mundo e com os outros. Viver ou encarnar esta constatação evidente, enquanto educador, significa reconhecer nos outros o direito de dizer sua palavra. Direito deles que corresponde o nosso dever de escutá-los.Paulo Freire

Logo em uma de suas primeiras aulas, o professor John Keating, após abrir o livro didático de literatura, pede para que um dos alunos comece a ler o primeiro capítulo cujo assunto é poesia. Antes que o estudante termine a leitura em voz alta do primeiro parágrafo, o professor o interrompe dizendo: “Como pode descrever a poesia como se fosse um concurso?”, e logo após ordena sem hesitação que os alunos rasguem e lancem ao lixo o primeiro capítulo sobre poesia do livro didático.
Não pretendo defender nenhuma diretriz sobre teoria da literatura, mas certamente essa cena de Sociedade dos poetas mortos é um convite para a pergunta que intitula o meu presente artigo: afinal, o que pretendemos ao ensinar literatura nos colégios, “moldar o gosto e restringir a criatividade” e, portanto, fazer do aprendizado um acontecimento “limitado e isolado do mundo” , ou tornar as nossas crianças e adolescentes sujeitos leitores de literatura, e a partir dessa, conscientizá-los sobre o estar no mundo como sujeito de sua própria história e da história de seu país?
As justificativas para que se mantenha o sistema atual de ensino de literatura, que consiste em ler alguns poemas e trechos de romance, ora escolhidos apenas pelo professor, sem que se realize um diálogo com os alunos, ora oferecidos pelo próprio livro didático, são várias: a indisponibilidade de tempo do professor - que tem que trabalhar em mais de duas escolas, devido ao baixo salário - para a leitura de novos romances e poetas, um cronograma exigido pelo vestibular, a competitividade do mundo das letras com o mundo digital entre outras.
Admito que existe na área da educação de nosso país inumeráveis motivos de descaso responsáveis por desestimular professores e alunos. Mesmo assim, acredito que se olharmos para exemplos não apenas ficcionais como John Keating, mas reais, como Frank McCourt, autor de Ei, professor , poderemos alcançar nosso objetivo de formar cidadãos leitores de literatura, tendo o livro didático como mais uma ferramenta apenas para o aprendizado, e não como base ou direcionamento para as aulas, visto que esse (o aprendizado) deve ser construído pelo professor junto com os seus alunos, tendo o professor que se manter atualizado a cada ano, a cada turma, e cada turma ter que se comportar de forma ativa no universo escolar construindo através da troca de informações de mundo e de materiais diversos o seu conhecimento.
Antes de tudo, é preciso, segundo Paulo Freire, reconhecer que não há neutralidade no que diz respeito à educação, ou seja, direcionando essa constatação para dimensões menores, microscópicas, o professor, em sala de aula, estará sempre defendendo algum ponto de vista, alguma verdade em que acredita, portanto aconselha: “o que devemos fazer, enquanto educadores, é aclarar assumindo nossa opção, que é política e sermos coerentes com ela na prática” . Nas palavras de Frank McCourt: “é preciso abrir seu próprio caminho na sala de aula. É preciso descobrir a si mesmo. É preciso criar um estilo próprio (...) É preciso dizer a verdade senão os alunos vão desmascará-lo” .
Neste artigo defende-se, desde o princípio, o ensino de literatura como libertação e não como alienação, ou seja, como construção pelo leitor, em contato com a obra, de significados e ideologias presentes na literatura; e não apenas como repetição do que já vem pensado no material didático sobre as obras literárias, por exemplo, e, por isso, cabe-nos defender também a prática do ensino de literatura em sala de aula a partir da participação ativa dos alunos, reconhecendo-os, já no espaço escolar, como agentes da história, visto que “não é o discurso que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso” .
Agora que já estamos conscientes da importância da literatura nas escolas e da visão política adotada – a que nega a literatura em sala de aula como mais um meio de manipulação e, ao contrário disso, preza a “participação dos educandos no ato de conhecimento de também são sujeitos” – podemos conjeturar acerca dos empecilhos encontrados no próprio sistema escolar - na direção das escolas, fora das salas de aula – e de soluções para os mesmos.

3. Um sistema incoerente (e respostas coerentes)
Os alunos das minhas turmas, adultos entre dezoito e sessenta e dois anos, achavam que a opinião deles não valia nada. Quaisquer idéias que tivessem provinham todas da avalanche da mídia do nosso mundo. Ninguém jamais lhes disse que tinham direito a pensar por conta própria
O reconhecimento de que “ninguém sabe tudo e ninguém ignora tudo” , defendida por Paulo Freire, e encarnado na postura de John Keating e Frank McCourt , por exemplo, na sala de aula, trouxe a ambos grandes problemas. Frank McCourt foi convidado a deixar uma escola mais tradicional, devido ao seu “irregular” comportamento, perante e com os alunos, como transformar receitas culinárias em poemas; já Keating, além de receber olhares reprovadores de superiores da hierarquia escolar e de colegas também professores - quando não de próprios alunos mais conservadores do que os demais - foi moralmente responsabilizado pelo suicídio do estudante Neil Perry, por Robert Sean Leonard, sendo demitido. Perry, opta por tirar a própria vida, quando se vê impedido pelo pai de seguir a carreira de ator.
O que esses dois professores fizeram e nos servem de matéria para reflexão, foi dar voz aos alunos, reconhecendo-os como cidadãos agentes da história; e por isso foram massacrados pelo sistema escolar incoerente no que diz respeito ao seu discurso libertário e à sua prática pedagógica extremamente autoritária. Atuaram como elementos capazes de realizar as transformações anunciadas por Freire:
As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação sistemática se está dando e alteram seu papel ou seu esforço reprodutor da ideologia dominante

Acredito portanto que, enquanto encontrarmos resistência e receio do que o outro tem a dizer, enquanto houver censura dissimulada sobre a leitura de obras literárias, não será redundante perguntar sobre o papel da literatura nas escolas, e nem qual a melhor forma, se é que essa existe, de se ensinar literatura de modo que ela não seja apenas mais um objeto que contribua para o comodismo e a alienação, mas para a libertação, a construção da visão crítica e consciente sobre o mundo, abrindo, e não fechando, janelas, para novos horizontes.















REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
CANDIDO, Antonio. Direitos humanos e... . São Paulo: ed. Brasiliense, 19??
COLOMER, Teresa. Andar entre livros. São Paulo: ed. Global, 2007
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1988
McCOURT, Frank. Ei, professor. Rio de Janeiro: ed. Intrínseca, 2006.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: ed. Autêntica, 2006.
WEIR, Peter. Sociedade dos poetas mortos. 1989. cor. 129 min., Buena Vista Pictures.

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