segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Conto - Som caloroso


Som caloroso

Acredito ter alcançado, finalmente, tudo aquilo que sempre busquei. Hoje, aos cinqüenta e dois anos, posso dizer que minha luta resultou na conseqüência da qual sempre quis que fosse a causa.
Moro num invejável apartamento de um prédio a que todos aqueles que possuem um naco de civilização em suas mentes chamam de luxo. Cômodos arejados e amplos. Decoração que aparenta ser inspirada nas emoções mais sinceras de uma alma renascentista. Cada parte trabalhada de tal maneira minuciosa, que assim como as igrejas do século XVII, era impossível crer-se concretizadas por mãos humanas. Não obstante, tudo que consegui é dotado de muita humanidade, e só dela advém.
Móveis impecáveis. Beleza e conforto em harmonia total. Mas nem por ter a minha casa o encanto das belas obras de tempos há muito idos, abstém-se do melhor que pode proporcionar a era digital.
Televisores que ostentam imagens que parecem filtrar todo o espaço real. Uma beleza mágica. Às vezes acredito que a imagem digital é produto de bela magia, magia a que todos nós buscamos quando crianças e que gradativamente se esvaece com a chegada da maturidade. Esta que chega com o passar dos anos agastada pelos mais diversos choques de realidade.
O que mais me impressiona é a vista. Majestosa vista! Sim, porque meu apartamento é uma cobertura. À noite deixo-me enlevar por horas em sua imensidão, naquelas luzes noturnas e nas rajadas de ventos frescos. Sou um tipo de rei, um senhor feudal de uma época em que poucos, muito poucos, são detentores do “reino” que tenho hoje.
Mas nada é perfeito. Aos cinqüenta e dois anos, minha vida é por demais silenciosa. Somente escuto os ruídos incessantes dos veículos, dos toques do meu celular e da televisão quando a ligo.
Detesto a noite. Olho para a minha mesa farta, os móveis, ar condicionado, TV, os pouco porta-retratos com fotos e nada. Nada, absolutamente nada...
Fotos são momentos congelados, servem para relembrar. E viver de lembranças é morrer deixando cada pequena parte vital nas reminiscências remanescentes. Imagens de um tempo que hoje em tudo parece melhor e para o qual é impossível retornar a fim de reescrever a própria história, só que agora com um conteúdo imprescindível adquirido pela experiência, com um vocabulário mais vasto e com um estilo infinitamente superior. As fotos relembram épocas que deveriam tão-só ter sido um ensaio para que após pudesse eu fazer de minha biografia um grande espetáculo.
Infelizmente, o roteiro de minha vida foi desaprovado por quem mais importa: eu mesmo! As cortinas fecharam-se para um palco, sem dúvida, esplendoroso, rico, belo, mas diante de uma platéia deserta. Silêncio... nem o choro das tragédias, quanto menos os suspiros dos romances e as risadas das comédias.
Certa vez, levei um empregado “quase-amigo” até sua casa. Regula-me a idade. Voltávamos de uma longa viagem de trabalho. Era véspera de Natal. Ao chegar à residência foi recebido com imensa alegria por sua esposa e uma moça que devia ter uns dezenove anos, sua filha. Linda e meiga garota! A seu convite, juntei-me a eles naquela noite e observei-lhes as expressões durante aqueles breves momentos. Parecia o prolongamento das minhas fotos. Momentos dotados de som, mas não o som mecânico e frio que me acompanha nessa fase de minha vida. Era um som caloroso, de um aplauso emocionado, satisfeito com o espetáculo. Simplesmente feliz!
Há muito que não desfruto desse som. Nada quer dizer com o fato de ter pessoas em meu redor. É outra coisa!
Hoje tenho cinqüenta e dois anos. Estou no lugar pelo qual sempre lutei para estar, diante de uma mesa farta. Falta-me o som que tem em casa o meu “quase-amigo”. Tirando os automóveis que esta noite continuam a passar lá embaixo, tudo permanece silencioso e a noite é fria como o barulho que interrompe o silêncio.
Do banquete que tenho à minha frente só tomarei o cálice de cianureto. Assim que acabar de escrever o levarei à boca. Tenho certeza de que quando acabar minha cabeça irá despencar sobre a mesa provocando um som seco e imperceptível a terceiros. Som do qual somente meu palácio será testemunha.
Palácio imenso, frio e silencioso, a quem minha vida dei para conseguir! Toma-a agora suas paredes, para todo o sempre, e em silêncio.

Gustavo Teixeira Barbosa

Um comentário:

  1. Tirando algumas contruções desnecessárias como "reminiscências remanescentes", achei o conto muito bom. Frio, impactante e bastante atual! A solidão será sempre atual, a insatisfação também!
    Parabéns Gustavo
    Abs

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