domingo, 14 de dezembro de 2008

Artigo: Literatura Portuguesa Contemporânea I



Reflexões sobre o espaço em O esplendor de Portugal: a transformação do cenário pela guerra

Marcela Teixeira Barbosa (UFF)

O trabalho tem como objetivo a análise da questão do espaço e, conseqüentemente, do tempo, dentro da obra O Esplendor de Portugal, de Antônio Lobo Antunes, apontando as suas funções e de que maneira são introduzidos pelo narrador. Denota-se, principalmente, a peregrinação das personagens Isilda e Maria da Boa Morte por Angola em momento de guerra civil, procurando-se problematizar as descrições do cenário nos diferentes tempos pelos quais atravessa a narrativa.

O Esplendor de Portugal, de António Lobo Antunes, é composto por quatro vozes narrativas em primeira pessoa (Isilda, a mãe e Carlos, Clarisse, e Rui, os filhos) através das quais o enredo se desenvolve de maneira fragmentada, visto que cada uma delas conta um quinhão da história a partir do seu ponto de vista e de suas experiências, ora vividas no tempo presente, do qual narram, ora revividas de um tempo pretérito, geralmente comum a todas elas. Entretanto, não é apenas a polifonia a responsável pela fragmentação do romance; a narrativa de cunho memorialístico se constrói conforme os estados emocional e psicológico dos narradores-personagens, ou seja, conforme uma lógica interior.
Dentre muitos outros temas que se podem ver problematizados neste romance quanto à sua estrutura de fluxo de pensamentos, resumidamente descrita acima, talvez seja a do espaço fundamental para uma boa investigação sobre a vida e o eu de cada um dos personagens e, principalmente, sobre os objetivos do autor. Neste texto, concentra-se a análise do espaço na forma como é introduzido pela narradora Isilda na sua fuga pelo território angolano junto a Maria da Boa Morte dos perigos da Guerra Civil. Antes disso, todavia, o tema será abordado de forma geral, não sendo, assim, possível a sua análise profunda.
Podemos dizer que o romance, quanto a uma visão macroscópica, possui dois grandes espaços principais: o espaço de Portugal, especificamente Ajuda, onde estão situados também no tempo, 24 de dezembro de 1995, os três filhos de Isilda; e o espaço de Angola, onde se encontram a mãe, a cozinheira, Maria da Boa Morte, e os demais empregados, na fazenda de algodão, em Malanje. Já uma visão microscópica do espaço, permite-nos apontar a sua multiplicidade: a fazenda e os seus cômodos, as estradas, o galpão de caça de Eduardo (pai de Isilda), o quarto do comandante de polícia (em Angola); a casa de Carlos, o apartamento de Clarisse, a clínica de internação de Rui, entre outros (em Portugal).
Essa variedade de espaços não torna, como acontece em alguns romances, a obra superficial no que diz respeito, por exemplo, à constituição das personagens e ao drama por elas vivido, pois é a estrutura narrativa de deslocamentos de tempo e espaço, realizada de maneira fragmentada pela memória (alternando passado e presente; Angola e Portugal) o recurso responsável pelo aprofundamento da construção do “eu” das personagens; ou seja, é assim que o leitor conhece a história das mesmas e a trajetória por elas percorrida até o presente momento, do qual elas contam o seu ponto de vista sobre a história familiar em Malanje, fator, segundo George Lukács, imprescindível, pois sem ele não há “margens a que as interessantes qualidades do personagem se expliquem através de um entrecho individual e o interesse (do leitor) diminui” (LUKÁCS, 1968, p. 96). Imediatamente, às vezes sem nenhum aviso ao leitor, a narrativa é deslocada, de uma oração para outra, para espaços completamente diferentes, no passado das personagens, como se as suas lembranças “presentificassem” aquele espaço e aquele tempo. Como exemplo disso, temos o momento em que Carlos está na cozinha de sua casa na Ajuda e, de repente, está em um jipe que percorre um caminho para longe de sua fazenda, em Angola:

fiquei sozinho na cozinha a ouvir o zumbido do frigorífico e a olhar os morros da Almada, a olhar a fazenda do postigo do jipe à medida que nos afastávamos pelos buracos da picada que dividia os girassóis murchos até ao alcatrão... (O.E.P, p. 12).

Dessa forma, a mudança de espaço é essencial justamente para uma construção mais complexa do romance, ou seja, a disposição das memórias, por não se conter em um único espaço, onde se encontram as personagens, no presente, enriquece o entrecho, tornando possíveis, diferentes janelas de interpretação e análises, sejam essas realizadas a partir do foco narrativo ou da estruturação do enredo. Parafraseando Massaud Moisés, o enriquecimento ocorre, porque “os personagens trouxeram dentro de si os germes de antagonismos mais sugestivos, decorrentes noutro lugar” (1983, p. 103).
Além disso, a sobreposição do espaço passado de Angola sobre o espaço presente de Portugal, efetuado, a todo o momento, por Carlos, Rui e Clarisse, tem uma outra importante função de denotar que os filhos de Isilda ainda se encontram presos ao espaço de Angola, à fazenda de Malanje e à sua densa atmosfera. Enfim, a estratégia é de construir o enredo a partir de lembranças que surgem de maneira não linear, como se cada mudança de espaço, tempo e narrador fosse uma peça de um grande quebra-cabeça que o leitor terá que montar. Desperta-se, então, naquele que lê o romance, a curiosidade não de saber o fim da história, pois esse, desde o princípio, já está subentendido pelo que dizem as personagens, mas a de montar esse “quebra-cabeça”, visto que o autor não narra e tampouco descreve situações prontas e acabadas; ele constrói o romance de forma recortada forçando o leitor a agir como um investigador, analisando os diferentes discursos, organizando os diferentes espaços e tempos.
Para isso, a descrição de determinados objetos, por exemplo, adquire o papel de revelar o tipo de ambiente que envolve as personagens e, dessa forma, caracterizá-las e situá-las na história, como por exemplo, o relógio da sala em Angola, que não aparece descrito simplesmente devido a funções estéticas ou vazias, de que tratou George Lukács em Narrar ou descrever, mas com o objetivo de demonstrar, além do tenso ambiente familiar, a insegurança vivida por Carlos, que se percebe em um ambiente preste a explodir, mas que se mantém inteiro e único devido às batidas do relógio: ou seja, é a esse objeto que ele, na sua infância, confia a segurança e estabilidade do lar, que são inexistentes: “As coisas só têm vida poética enquanto relacionadas com acontecimentos de destinos humanos” (LUKÁCS, 1968, p. 7), por isso o bom narrador deve descreve-las apontando para “a função que elas assumem nas vidas humanas” (LUKÁCS, 1968, p. 7) como fez Carlos.
Na fuga de Isilda e Maria da Boa Morte por Angola à procura de um lugar seguro em plena Guerra Civil, acompanhamos as duas mulheres a deixarem a fazenda, cruzarem o rio “que era um rio nas chuvas e agora um pântano de lodo ralo onde os crocodilos não encontravam abrigo” (O.E.P, p.227), chegar a Marimba, na antiga casa de caça de Eduardo e percorrerem a estrada até Luanda. É preciso estar atento à elaboração desses espaços para que não cometamos o equívoco de confundir com espaço o conjunto de processos e elementos narrativos - a que Osman Lins denominou ambientação - responsáveis pela construção do ambiente, no caso de O.E.P, de destruição, violência e vazio.
Como a descrição do espaço da guerra surge conforme as ações e os paralelos entre um passado e um presente realizados por Isilda, podemos dizer que a ambientação, neste caso, é dissimulada. A personagem revela ao leitor a sensação de vazio perante um espaço que foi transformado, que não mais existe: “eu a Josélia e a Maria da Boa Morte ao mudarmos fugindo da guerra (...) da miséria da Chiquita que não existia mais para a miséria de Marimba que se calhar não existia também” (O.E.P, p. 225-226). Essa estratégia de descrição denota a perda da identidade num lugar em que as imagens e elementos não são mais as auzaléas, os girassóis ou o algodão, visto que são substituídos por bombas de napalm, tropas do governo, mercenários da Unita e militares degolados.
A narrativa não convencional de A. L. A., que foge a qualquer “narrativa-mestra” (HUTCHEON, 1991, p. 23), permite a construção do espaço da guerra de maneira que o leitor o possa absorver e ser conduzido a uma nova reflexão sobre esse passado sangrento e nada glorificador. Assim, conforme Isilda e Maria da Boa Morte caminham em meio à degradação, as recordações daquela surgem para mostrar a transformação não somente chocante do espaço pela guerra, mas também para despertar naquele que as acompanha o sentimento de melancolia e não lugar no mundo pelos quais passam as duas mulheres; e isso é claramente alcançado em diversos momentos da narrativa, como por exemplo, na ambientação assinalada pela indicação de marcas temporais do pretérito mais-que-perfeito, “o que fora o edifício da administração, o que fora residência do administrador, o que fora o posto de enfermagem, o que fora o quartel dos portugueses em treze anos de guerra com escudos e capela de adobe, o que foram as senzalas” (O.E.P, p. 245), reforçada pelas lembranças de Isilda do discurso do não-lugar de parte dos portugueses, proferido diversas vezes pelo seu pai: “expulsos através dos angolanos pelos americanos, os russos, os franceses, os ingleses que não nos aceitam aqui para chegarmos a Lisboa onde nos não aceitam também” (O.E.P, p. 244).
Logo, o foco narrativo não se concentra na descrição pictórica, comum em romances realistas da segunda metade do século XIX. O espaço é apresentado a partir de uma personagem ativa, que incorpora o horror consecutivo da guerra civil e não apenas descreve imagens estáticas ou cenários imutáveis. Ao apontar a falta de elementos do espaço anterior ao conflito armado, ou a substituição desses por outros, subentende-se o movimento de transformação ocasionado pelos confrontos: “não pode ser Luanda porque não encontro a Samba Pequena a Samba Grande, a Corimba, o barco do Mussulo, encontro (...) cadáveres de feira e ruínas de cartão” (O.E.P, p. 344). Assim, Isilda recusa a realidade desordeira de Luanda, “a cidade dos defuntos” (O.E.P, p. 317), negando a veracidade do que presencia. Ela atribui ao real o valor de espetáculo, de cenas dramatizadas: “um mimo representado de defunto pendurado no muro, se batermos palmas levanta-se e agradece, se voltarmos costas pergunta ao contra-regra – Fui bem? Enquanto limpa com o lenço a maquiagem e a graxa...” (O.E.P , p. 343).
A fuga de Isilda, portanto, não se dá somente através da sua andança pelo território angolano, mas também pela não aceitação do cenário de ruínas e de morte que a envolve. Assim, enquanto é encaminhada para a sua execução, na véspera de natal, do ano de 1995, pelos tropas do Governo, ela foge para um espaço interiorizado e idealizado de uma reunião natalina com seu marido, sua mãe, seus filhos e os empregados a lhes servirem:

as paredes da sala, os bibelôs, os quadros a ecoarem segundo o ritmo das árvores e a cadência das ondas como o algodão durante o jantar quando o Fernando trouxer a canja, o peru, o bolo-rei, os sonhos, as fatias douradas, o espumante, o meu marido a acender as velas do pinheiro, o Damião a amontoar os presentes contra a jarra
(p. 373).

Nos seus últimos momentos, Isilda nega as circunstâncias presentes, como em um faz-de-conta, fingindo que nada daquilo está acontecendo, e corrige, no seu interior, as imperfeições de seu passado, recriando a sua vida:

a tropa do governo e os estrangeiros da Unita nunca estiveram aqui, os bailundos nunca escaparam para a mata, nunca deixei os meus filhos no cais para Lisboa, nem um só cadáver nas ruas de Luanda, o meu marido, que história mais parva, nunca escondeu uma garrafa que fosse nas gavetas, não casei por estar grávida nem o meu pai me arranjou um noivo nem o meu pai me arranjou um noivo e lhe pagou para esconder a vergonha, sou virgem (p. 373).

Fora do lar, esse espaço onírico, perfeito, torna-se o seu refúgio, ou seja, perdida nesse mundo incoerente, a criação desse espaço é a forma que ela encontra de se proteger da realidade hostil e perigosa da guerra. Não se pode deixar de apontar para o fato de que é para o ambiente familiar de sua casa, mesmo que transformado pelo processo de idealização, o espaço para onde ela foge. Faz-se então uma analogia ao que Bachelard afirmou a respeito daquele, que ao deixar a sua casa dos tempos de infância, por uma nova, recorda-se daquela recriando-a: “Evocando as lembranças da casa, acrescentamos valores de sonho; nunca somos verdadeiros historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas, quem sabe, a poesia perdida” (BACHELARD, 1978, p. 201). O mesmo faz Isilda, que se encontra totalmente desamparada, sem lar e sem família. E será no momento de seu assassinato que descreverá, de forma mais precisa e detalhada, o espaço em que viveu momentos felizes de proteção, junto a seus pai, como se desejasse com toda vontade se segurar àquele tempo para sobreviver: “o vôo dos pássaros, asas de feltro, gritos, mar lá embaixo, o Mussulo, os coqueiros, descíamos à praia, os meus pais e eu, o meu pai de terno creme panamá, a minha mãe de sombrinha aberta cor de rosa, eu com um chapéu de palha que se atava sob o queixo”(p. 381).
Tais recursos descritivos - o de negar a realidade do tempo presente, porque não corresponde a do tempo passado e, dessa forma, entender o espaço como uma imitação de um outro, diferente, “uma cidade a imitar outra cidade” (O.E.P , p. 342) – superam a função de caráter somente ornamental, adquirindo também o valor essencial de desconstruir a idéia, tanto tempo pertencente à memória discursiva, que, por sua vez, está diretamente relacionada a um espaço e a um período no tempo, mas que sofre perda total de sentido em época de guerra, de que um povo é superior a outro para o submeter a sua cultura e a sua ordem: “enquanto caminhávamos para o norte ou que cuidávamos ser o norte (...) à cata de uma cidade de brancos como eu onde pudesse ser branca, a Maria da Boa Morte pudesse ser preta, o mundo redescobrisse a sua ordem antiga” (O.E.P , p. 250).
Sendo assim, uma das conclusões a que podemos chegar a respeito da incorporação do espaço na narrativa, de O Esplendor de Portugal, é a de sua função essencial de investigação e aprofundamento no drama das personagens e do interior das mesmas, porque o espaço, nesse romance, não é constituído de “situações estáticas, imóveis (...) estados de alma dos homens ou estados de fato das coisas (...) estados de espírito ou naturezas-mortas” (LUKÁCS, 1968, p. 70), mas está intrínseco às ações do “entrecho” (LUKÁCS, 1968); não é constituído de sentimentos de nostalgia ou saudosismo, mas da necessidade de nova reflexão sobre o período histórico que tanto abalou o brio português. Portanto, podemos dizer, assim como afirma Linda Hutcheon, sobre os romances pós-modernos, que a obra de António Lobo Antunes, não “sugere nenhuma busca para encontrar sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo em relação ao passado à luz do presente” (HUTCHEON, 1991, p.39), proposta por mais de um ponto de vista, por variados focos narrativos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANTUNES, António Lobo. O esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço __ in: Bachelard. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultura, 1978.
DIMAS, Antônio. Espaço e romance.São Paulo: Ática, 1985.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LUKÁCS, George. Narrar e descrever_ in: Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MASSAUD, Moisés. A criação literária. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 1983.

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